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que estão carregando juntas um grande vaso de flores: não vão tão
depressa, para que eu possa ajudar"! Tal é a intensidade "do grande
desejo resultante do fato de ser bastante poderoso para não ser egoísta". '
Mas esta generosidade aparente é apenas a transposição de uma si-
tuação inicial que não deve ser perdida de vista. Ama-se, mas se odeia,
ou, mais exatamente, ama-se porque se odeia: "todas as crianças... vêem
nas outras crianças rivais atuais ou virtuais". ~ As crianças oscilam per-
petuamente entre o amor desvairado e o ódio encarniçado: "não há sen-
timento equilibrado, não há atitude fixada". A relação de amizade estável
só começa com o aparecimento de um ódio estável por alguma outra
pessoa, de tal modo que se pode falar "da relação reciproca entre o amor
de seus amigos e o ódio de seus inimigos". Mas a hostilidade continua
sendo sempre a atitude primitiva e fundamental: "é a hostilidade que
alimenta o drama na vida das crianças pequenas como na vida dos
adultos". "
Para saber que não estamos aqui em plena digressão, não precisa-
mos comparar esta atitude infantil com relação aos presentes com a
dos xamãs esquimós, segundo os quais "os presentes dão a força" ''',
nem evocar o hino indu do casamento: ufoi o amor que a deu,
é ao amor que ela foi dada, etc.... que encontraremos mais adiante. 11
Porque todas as observações precedentes poderiam encontrar na pesqui-
sa etnográfica uma glosa praticamente ilimitada. Apelo à regra para es-
capar aos intoleráveis sofrimentos do arbítrio. Necessidade extrema de
segurança, que faz não nos empenharmos nunca excessivamente com re-
lação ao outro, e que estejamos prontos a dar tudo para ganhar a cer-
teza de não perder tudo, e de receber, quando for a vez. Personalização
do Dom; oposição correlativa entre as noções de antagonismo e de re-
ciprocidade; divisão dos seres entre amigos, aos quais nada é recusado,
e inimigos, pessoas que "devo aproveitar a primeira ocasião para matar,
com receio de que me matem" 1~; todas estas atitudes revelam uma ana-
logia tão profunda - às vezes levada às últimas conclusões - entre a
sociedade infantil e as sociedades chamadas primitivas, que não podemos,
sem correr o risco de trágicos enganos, nos dispensar de procurar as
razões de tais comportamentos.
o problema das relações entre pensamento primitivo e pensamento
infantil não é, com efeito, novo. Foi estabelecido em termos quase imu-
táveis, por autores tão afastados sobre outros aspectos quanto os psi-
canalistas e alguns psicólogos como Blondel e Piaget. É tentador, na
verdade, ver nas sociedades primitivas uma imagem aproximada de uma
mais ou menos metafórica infância da humanidade, cujos estágios prin-
cipais seriam reproduzidos também, por sua parte e no plano individual,
- Ibid., p. 274.
- Ibid., p. 23l.
- Ibid., p. 251·266.
- K. Birket-Smith, The Eskimos, Londres 1936, p. 172.
- Cf. capo XXIX.
- A. R. Radcliffe Brown, Three Tribes of Western Austrália. Journal of the Rayal
Anthrapological Institute, voI. 43, 1913, p. 151. - Devemos comparar com as obser-
vaçõ.es de M. N. Searl (~ome Contrasted Aspects of Psychoanalysis and Education,
Bnt2sh Journal of Educatlonal Psychology, vaI. 2) que descreve na criança a mesma
dicotomia imperiosa que se aplica aos seres e às coisas.
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