Como explicar esta situação paradoxal? As razões de detalhe ir"
se revelando ao longo de nossa análise. Mas é possivel desde agof"
acentuar alguns traços gerais, que apresentam interesse metodológico.
Granet conhecia admiravelmente a literatura sociológica chinesa, e o
mesmo faro que lhe tinha feito descobrir no Ehr ya vestígios do casa-
mento entre primos cruzados colocou-o na pista de outras singularidades,
cuja interpretação oferece, na verdade (conforme se perceberá na con-
tinuação deste capítulo), dificuldades pouco comuns. Seja como for, a
suficiente familiaridade com os problemas do parentesco não somente
na China mas no resto do mundo teria podido servir-lhe de fio condutor.
É justamente esta familiaridade que falta a Granet. Realmente - exceto
os fatos Katchin, que são essenciais e que ele soube descobrir - parece
que não conheceu com exatidão senão os fatos australianos. Mas, coisa
ainda mais grave, julga suficiente este conhecimento, pois está ainda
inteiramente imbuído da idéia de Durkheim segundo a qual a organização
australiana é a mais primitiva que se conhece e que é possivel conceber.
Nasce daí um duplo erro. Granet insiste constantemente na idéia de que
o sistema matrimonial com quatro classes (isto é, fundado simultanea-
mente na filiação e na distinção das gerações consecutivas) é o sistema
mais simples que possa existir. "Quando se analisa o sistema de nomen-
clatura que os chineses seguiram em matéria de proximidades, parece
que partiram do regime de coesão mais estável (e mais simples) que
se conhece" ... Diz adiante: "O conjunto da nomenclatura parece explicar-se
partindo da divisão de comunidades endógamas em duas secções exóga-
mas, cada uma das quais se subdivide por sua vez em duas de maneira
a diferenciar as gerações consecutivas, e os casamentos fazem·se obriga-
toriamente entre SECÇOES ex6gamas e GERAÇOES paralelas.
"Este modo de divisão e este sistema de aliança matrimonial são bem
conhecidos, sendo aliás os mais simples que conhecemos" ...
Ora, não há nada mais inexato do que esta afirmação, que suprime
de uma sÓ vez as organizações dualistas com metades exogâmicas. Não
faltam exemplos, provenientes de todas as regiões do mundo, de socie-
dades nas quais a reciprocidade das trocas matrimoniais funda-se so-
mente na distinção em duas fratrias, sem intervenção do principio das
gerações. Vamos nos limitar a um único exemplO, o dos bororos. Sem
dúvida, encontramos entre estes indígenas uma forma de casamento pre-
ferencial com um ou vários clãs determinados, membros da fratria pres-
crita pela regra da exogarnia. Mas não existe a diferenciação das gerações,
havendo duas formas freqüentes de casamento, uma o casamento avuncu-
lar (com a irmã do pai) não exclusivo de um casamento anterior na
geração do indivíduo, e outra o casamento, simultâneo ou consecutivo,
com uma mulher e com a filha desta. Em tal caso a reciprocidade é
tratada de maneira global, como uma troca em conjunto entre as fratrias.
Não é levada em conta a necessidade (que parece um requinte lógico).
de compensar na geração seguinte, mediante contraprestações, as pres-
tações de esposas que se realizam entre adultos da geração atual. Granet
typen in de Groote Oost, Leiden 1935) na época em que escrevia este livro, e isso
não é a menor das lacunas de um trabalho que contém muitas outras].
- Granet, op. cit., p. 159.
11.. Idem, p. 166. Nesta citação, como nas seguintes, foi respeitada a tipografia in-
fluenCiada por MalIarmée utilizada por Granet.
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