Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1
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fica claro no caso do casamento avuncular, mas estes caracteres primi-
tivos persistem mesmo quando o direito é cedido ao filho pelo pai. Assim,
o fato de em todos os lugares onde existe o casamento com a filha da
irmã do pai na 1ndia este privilégio traduzir-se por uma reivindicação
tão ansiosa e tão literal que os casamentos desiguais, nos quais o esposo
pode ser ainda uma criança, encontrem-se correntemente, exprime bem
o laço que existe nessa fonna de casamento, entre a reivindicação e o
objeto reivindicado_
Quando empregamos aqui o termo "primitivo", não pensamos em
afirmar a anterioridade cronológica do casamento COm a filha da irmã
do pai sobre as outras formas de casamento dos primos cruzados, mas
antes um caráter intrinseco. O casamento com a filha da irmã do pai, tal
como o casamento com a filha da irmã, representa, tanto do ponto de
vista lógico quanto psicológico, a mais simples e grosseira realização con-
creta do princípio de reciprocidade. Daí não se segue de modo algum que
deva ser a mais antiga. Por conseguinte, não é por um pretenso - e
díficilmente verificável - caráter de sobrevivência que explicamos a me-
nor freqüência desta forma de casamento. Conforme resulta da análise
precedente, esta constitui antes uma forma abortada. A reivindicação da
filha da irmã pelo tio materno ou -por seu filho é duplamente prematura,
primeiramente porque é uma especulação sobre um futuro ainda irreal,
e em seguida, e sobretudo, porque ao se precipitar para fechar o ciclo
de reciprociPade, este fica impedido de estender-se ao conjunto do grupo.
Mesmo fechado (e possuindo, por esta razão, seu valor funCional), nunca
superará esta forma anã de tantas plantas precoces. Será apenas um
pequeno ciclo, de duas alianças somente, em vez de abranger um grande
número de alianças, dadas globalmente (troca restrita) ou em cadeia
(troca generalizada).
Se, portanto, em última análise, o casamento com a filha da irmã
do pai é menos freqüente que o matrimônio com a filha do irmão da
mãe, é porque o segundo não apenas pennite mas favorece a melhor inte-
gração do grupo, enquanto o primeiro não consegue jamais fazer senão
um edifício precário, construído com materiais justapostos, sem obedecer
a nenhum plano de conjunto, exposto, por sua textura discreta, à mesma
fragilidade que a de qualquer uma das pequenas estruturas locais que,
em definitivo, o compõem. Se preferirmos outra imagem, poderemos dizer
que o casamento com a filha da irmã do pai opõe-se às outras formas
de casamento entre primos cruzados do mesmo modo que uma economia
fundada sobre a troca à vista se opõe às economias que praticam opera-
:.r; ções a prazo. Por esta razão, é incapaz de utilizar as garantias dadas
pelas classes matrimoniais, garantia dada a cada indivíduo de que o con-
travalor daquilo que cede estará eternamente presente, na classe dos
cônjuges possíveis, assim como a nota de dinheiro representa a garantia
da permanente presença do ouro nas arcas do tesouro público. O casa-
mento com a prima patrilateral é uma forma do casamento por troca,
mas uma forma tão elementar, que dificilmente se pode qualificar esta
transação de troca, porque a identidade substancial da coisa reivindicada
com a coisa cedida é procurada através da irmã em sua própria filha.
Na escala das transações matrimoniais representa o que ganha pouco.

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