Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

outras e obrigando-as a sobrepujarem seus primeiros caracteres. O estado
de natureza só conhece a indivisão e a apropriação além da mistura dessas
ao acaso. Mas, conforme já Proudhon tinha observado a propósito de
outro problema, não é possível superar essas noções senão colocando-se
em um novo plano. "A propriedade é a não-reciprocidade e a não-reci-
procidade é o roubo ... Mas a comunidade é também a não-reciprocidade,
porque é a negação dos termos adversos. É ainda o roubo. Entre a pro-
priedade e a comunidade eu construiria um mundo ... ·" Ora, que é esse
mundo senão aquele do qual a vida social procura inteiramente construir
e reconstruir sem cessar uma imagem aproximada e nunca integralmente
perfeita, o mundo da reciprocidade, que. as l~is do parentesco e do casa-
mento, por sua própria conta, fazem laboriosamente brotar de relações
que, sem isso, estariam condenadas a permanecer ou estéreis ou abusivas?
Mas o progresso da etnologia contemporânea seria insignificante se
tivéssemos de nos contentar com um ato de fé - sem dúvida fecundo
e, em seu tempo, legítimo no processo dialético que deve 'inevitavelmente
fazer nascer o mundo da reciprocidade, corno a síntese de dois caracteres
contraditórios inerentes à ordem natural. O estudo experimental dos fatos
pode ir ao encontro do pressentimento dos filósofos, não somente para
comprovar que as coisas passaram-se realmente assim, mas para descre-
ver, ou começar a descrever, corno se passaram.
A este respeito a obra de Freud oferece um exemplo e uma lição. A
partir do II\omento em que se pretendia explicar certos traços atuais do
espírito htuhano por um acontecimento ao mesmo tempo historicamente
certo e ldgicamente necessário, era permitido. e mesmo prescrito, tentar
reconstituir, escrupulpsamente a seqüência dos fatos. O malogro de Totem
e Tabu, longe de ser inerente ao propósito do autor, prende-se mais à
hesitação que o impediu de se prevalecer até o fim das conseqüências
implicadas nas suas premissas. Era preciso ter visto que fenômenos que
se referem à estrutura mais fundamental do espírito humano não teriam
podido aparecer de uma vez por todas. Repetem-se inteíramente no in-
terior de cada consciência e a explicação de que dependem pertence a
uma ordem que transcende ao mesmo tempo as sucessões históricas e as
correlações do presente. A ontogênese não reproduz a filogênese, ou o
contrário. As duas hipóteses conduzem às mesmas contradições. Só se
pode falar de explicação a partir do momento em que o passado da
espécie torna a representar-se em cada instante no drama indefinidamente
multiplicado de cada pensamento individual, porque sem dúvida ele pró-
prio não é senão a projeção retrospectiva de uma passagem que se pro-
duziu porque se produz continuamente.
~, Do ponto de vista da obra de Freud esta timidez conduz a um estranho
e duplo paradoxo. Freud explica com êxito não o início da civilização
mas seu presente. Tendo partido à procura da origem de uma proibição,
consegue explicar não por que o incesto é conscientemente condenado, mas
como acontece que seja inconscientemente desejado. Já foi dito e repe-
tido o que torna Totem e Tabu inadmissível, como interpretação da proi-
bição do incesto e de suas origens, a saber, a gratuidade da hipótese da
horda dos machos e do assassínio primitivo, círculo vicioso que faz nas·
cer o estado social de atividades que o supõem_ Mas, como todos os



  1. P.·J. Proudhon, Solution du Problême social. CEuvres, voI. p. 13l.


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