OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13
© Marcos Corrêa/PR
da pandemia de Covid-19), um edito-
rial do Le Monde o alertou: “Seria um
novo erro. Se realmente carrega o in-
teresse de seus concidadãos no cora-
ção, Morales seria mais prudente se
ficasse de fora, para que a violência
possa acabar na Bolívia e um resulta-
do constitucional consiga emergir”
(14 nov.). A recomendação se revelou
inútil: o novo poder boliviano pro-
cessou Morales por “terrorismo e se-
dição”, uma acusação passível de
trinta anos de prisão, que o impede
de se candidatar.
Embora a “queda” do presidente
boliviano encantasse a imprensa, ela
incomodava uma parte da esquerda.
No site da Attac, o tema foi tratado
com rodeios. Morales foi cassado do
poder? Um “dossiê”^4 publicado on-li-
ne em 20 de dezembro de 2019 esco-
lheu não tomar posição: “Desde a
eleição presidencial de 20 de outubro
de 2019, a Bolívia passa por uma crise
política enorme que resultou na de-
missão do presidente Evo Morales em
10 de novembro”. Segue-se uma série
de artigos: alguns defendendo a tese
do golpe de Estado; outros se opondo
a ela, tais como a “Carta aberta do
movimento altermundialista sobre a
situação na Bolívia”, redigida por
Pablo Solón. “O presidente Evo Mo-
rales declarou [...] que um golpe de
Estado estaria em curso na Bolívia”,
escreveu o ex-embaixador do país
nas Nações Unidas. “Sinto muito em
lhes dizer que essa afirmação de Evo
Morales é completamente falsa.”^5
Em 14 de dezembro, “a redação”
do site Médiapart retomou um artigo
do Devoir de Montreal na forma de
um exercício de equilibrista. O do-
cumento justapunha, sem analisá-
-los, os posicionamentos. O leitor é
quem deveria decidir? Não total-
mente, pois o site apresentou tam-
bém uma exegese da situação publi-
cada no blog do intelectual argentino
Pablo Stefanoni.^6 De pronto, outros
autores rejeitaram as duas teses, que
se confrontavam: “Golpe de Estado
militar contra um governo popular?
Rebelião da sociedade contra um re-
gime tentado pelo autoritarismo? A
queda de Evo Morales [...] merece
mais que clichês ideológicos desgo-
vernados”. A essas hipóteses muito
decididas os autores opuseram “uma
lógica muito mais complexa e alea-
tória ligada à dinâmica cumulativa
dos eventos”. O exposto era de um
refinamento notável, mas a preocu-
pação de expor a “complexidade do
mundo” logo se esvaiu diante da
questão do relatório da OEA, cujos
resultados não foram objeto de ne-
nhuma avaliação crítica.
Ângulo similar nas palavras de
Denis Sieffert, do Politis, em 27 de no-
vembro de 2019: “Pouco importa que
as provas (de fraude) sejam parcas”,
proclamou. Para compreender a cri-
se, seria preciso “voltar a 2011 [...]
quando as comunidades e associa-
ções ecologistas se mobilizaram con-
tra um projeto de rodovia numa zona
protegida e sob controle indígena”.
Em outros termos, quando um diri-
gente político acaba de ser cassado
do poder pelo Exército, a urgência
consistiria em responder à questão:
Morales foi um bom presidente cerca
de dez anos atrás? Não teria cabido ao
povo boliviano se pronunciar sobre
essa questão um mês antes?
Foi nesse contexto que, em 7 de ju-
nho de 2020, o New York Times revelou
as conclusões de um novo estudo que
dinamitou os resultados do relatório
da OEA.^7 Após terem contestado os
cálculos estatísticos da organização,
os pesquisadores detectaram diversos
“problemas” e “erros metodológicos”.
Descobriram que a OEA “utilizou um
método estatístico inapropriado que
causou a ilusão de uma ruptura de
tendência no voto”. Contatado pelos
pesquisadores por diversas vezes para
obter seus dados, o consultor contra-
tado pela OEA, o professor Irfan Noo-
ruddin, recusou-se a responder-lhes.
Uma vez corrigidos seus erros, não ha-
via mais “traço estatístico de fraude”,
decidiram os autores. O New York Ti-
mes precisou admitir que o relatório
da OEA era “errôneo”. Dito de outra
forma, a Bolívia tinha acabado de pas-
sar por uma ruptura de ordem consti-
tucional apoiada pelo Exército: um
golpe de Estado.
Tremor de terra? Não para o Le
Monde, que estimou apenas que o ar-
tigo do jornal norte-americano “reto-
mou os debates sobre as pressuposi-
ções de fraude” (12 jun.). No
Libération, descobrimos que as esta-
tísticas dão dor de cabeça: “Passei
um dia me interessando por esse es-
tudo”, explicou-nos Francisco Go-
mez, jornalista encarregado da co-
bertura da América Latina para o
periódico. “E depois eu disse a mim
mesmo: não posso avaliar o valor
desse trabalho, pois não tenho com-
petências em matemática e estatísti-
ca”. Uma prudência que Gomez não
se impôs quando compartilhou as
conclusões do relatório da OEA – que
confessou “não ter lido”.
Contatados, os jornalistas do Fi-
garo, do Libération e do Le Monde
mobilizaram o mesmo tipo de argu-
mento. “Não foi um golpe de Estado,
foi uma lacuna constitucional”, esti-
mou Patrick Bèle, do Figaro. “Um gol-
pe de Estado é quando vão buscar o
presidente em seu palácio, colocam-
-no na prisão ou o depõem para colo-
car alguém em seu lugar imediata-
mente, o que quer dizer que há um
plano preestabelecido.” “Não houve
tomada de poder pelos militares”,
acrescentou Gomez. “Foi mais um
golpe de Estado civil por uma parte
da população: não é porque as pes-
soas são de direita que não têm o di-
reito de se mobilizar.” “Eu não utili-
zei a expressão ‘golpe de Estado’
porque possui conotações muito for-
tes”, justificou-se Campaignolle (Le
Figaro, Médiapart, France Info, RFI
etc.). “Só quem é muito de esquerda
utiliza essa expressão. Tentei ficar de
fora da confusão.” “Utilizar a expres-
são ‘golpe de Estado’ bloqueia a ref le-
xão sobre muitas coisas”, analisou
por fim Chaparro (Le Monde). Mas
não possibilita esclarecer a natureza
do regime em curso em La Paz desde
novembro de 2019?
Em 13 de novembro de 2019, na
France Inter, Sintes terminou seu
programa dedicado à Bolívia com es-
tas palavras: “Muito obrigada, tere-
mos muitas oportunidades de reto-
mar esse assunto”. Dez meses depois,
não tinham retomado o assunto.
*Anne-Dominique Correa é jornalista.
1 Ler Guillaume Long, Le ministère des colonies
américaines [O ministério das colônias ameri-
canas], Le Monde Diplomatique, maio 2020.
2 Cf. Guillaume Long, David Rosnick, Cavan
Kharrazian e Kevin Cashman, What Happe-
ned in Bolivia’s 2019 Vote Count? [O que
aconteceu na contagem de votos na Bolívia
em 2019?], Centro de Pesquisa Política e
Econômica (CEPR), Washington, 8 nov.
2019; e Jake Johnston e David Rosnick, Ob-
serving the observers: The OAS in the 2019
Bolivian elections [Observando os observa-
dores: a OEA nas eleições da Bolívia de
2019], CEPR, 10 mar. 2020.
3 Ler Maëlle Mariette, “En Bolivie, sur la route
avec l’élite de Santa Cruz” [Na Bolívia, na es-
trada com a elite de Santa Cruz], Le Monde
Diplomatique, jul. 2020.
4 La crise politique en Bolivie [A crise política na
Bolívia], Attac, Paris, 20 dez. 2019. Disponível
em: https://france.attac.org.
5 Pablo Solón, Lettre ouverte au mouvement al-
termondialiste sur la situation en Bolivie [Car-
ta aberta ao movimento altermundialista sobre
a situação na Bolívia], 24 out. 2019. Disponí-
vel em: https://france.attac.org.
6 Pablo Stefanoni e Fernando Molina, Bolivie:
comment Evo est tombé? [Bolívia: como Evo
caiu?], 14 nov. 2019. Disponível em: http://www.
mediapart.fr.
7 Anatoly Kurmanaev e Maria Silvia Trigo, A bit-
ter Election. Accusations of Fraud. And Now
Second Thoughts [Uma eleição amarga. Acu-
sações de fraude. E agora, mudança de
A imprensa internacional acusou Evo Morales de fraude nas eleições de 2019, mesmo sem provas ideia], The New York Times, 7 jun. 2020.
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