Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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20 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


Geopolítica dos


protestos bielorrussos


Os manifestantes bielorrussos têm por objetivo prioritário livrar-se de um dirigente,
e não recompor suas alianças geopolíticas. Também evitam qualquer propaganda
junto aos europeus para não desagradar a Moscou

POR HÉLÈNE RICHARD*

O KREMLIN DIANTE DA FRAGILIZAÇÃO DE LUKASHENKO


“É


uma revolução democráti-
ca, não geopolítica.” Ao
pronunciar tais palavras
durante uma videoconfe-
rência com os eurodeputados em 25
de agosto, Svetlana Tikhanovskaya,
que reivindica a vitória na última
eleição presidencial bielorrussa con-
tra o presidente Alexander Lukashen-
ko – oficialmente reeleito com 80%
dos votos –, pretendia mandar um re-
cado tanto a Bruxelas como a Mos-
cou. Para entender: a Bielorrússia
não é a Ucrânia, país vizinho onde
um coquetel de protestos, repressão
brutal e ingerências estrangeiras,
russas e ocidentais, desembocou em
2014 em uma guerra civil e na anexa-
ção da Crimeia pela Rússia.
A região tem memória. Em 2018,
uma revolução pacífica pressionou o
chefe do governo armênio à demissão.
Isso desenhou outra via possível para
Moscou: antes observador prudente
do maremoto popular originado por
Serge Sarkissian – quase um habitante
a cada cinco morava na rua, enquanto
o país experimentava um bloqueio
quase completo de sua economia –, o
governo russo tinha enviado em se-
guida uma delegação de deputados à
Armênia para sondar o opositor prin-
cipal sobre suas intenções, antes de

shenko. Ao mesmo tempo que excluiu
a participação da Organização de Se-
gurança e Cooperação na Europa
(OSCE) da supervisão de uma nova
eleição (uma proposta francesa),
Moscou pressionou o dirigente bie-
lorrusso a organizar uma reforma
constitucional, na esperança de favo-
recer o surgimento de um sucessor
compatível com seus interesses antes
da ocorrência de novas eleições.
Moscou se contenta em guardar
as vantagens de curto prazo que pode
extrair do enfraquecimento de Luka-
shenko. Após um deslocamento do
primeiro-ministro russo a Minsk, o
presidente bielorrusso foi para Sochi
em 14 de setembro. As discussões são
delicadas: desde a crise ucraniana de
2014, Minsk discretamente fez evo-
luir sua doutrina militar para preve-
nir uma potencial desestabilização
russa que tomaria por modelo a re-
gião do Donbass, multiplicando os
gestos de abertura em direção ao Oci-
dente. Dessa forma, a União Europeia
levantou a quase totalidade de suas
sanções contra a Bielorrússia em 2016
e relançou seu programa de auxílio.^3
Melhor ainda: em fevereiro, Luka-
shenko recebeu o secretário de Esta-
do norte-americano, Mike Pompeo,
pela primeira vez desde sua chegada
ao poder em 1994.
Tais infidelidades acabaram irri-
tando Moscou. A Rússia quer de ago-
ra em diante obter “mais pelo mesmo
preço”, até porque sua economia so-
fre ao mesmo tempo com as sanções
ocidentais e com a derrocada dos
preços do barril de petróleo. As sub-
venções russas à economia bielor-
russa caíram de 17% em 2013 para
10% do PIB hoje.^4 Em 2019, pela pri-
meira vez, Moscou se recusou a refi-
nanciar a dívida bielorrussa. Nesse
mesmo ano, uma modificação da tri-
butação russa sobre os hidrocarbo-
netos privou Minsk de um preço pre-
ferencial sobre o petróleo, uma perda
avaliada entre US$ 300 milhões e

ele assumir como primeiro-ministro.^1
Nikol Pachinian, embora houvesse no
passado criticado a União Econômica
Eurasiática na qualidade de deputado
da oposição, estava naquele momento
empenhado em tranquilizar Moscou
sobre seu desejo de manter os princi-
pais acordos econômicos e militares
que ligavam os dois países.
A revolta bielorrussa atual lembra
em diversos aspectos aquela que aba-
lou a Armênia há dois anos. Como
seus predecessores armênios, os ma-
nifestantes bielorrussos têm por ob-
jetivo prioritário livrar-se de um diri-
gente, e não recompor suas alianças
geopolíticas. Proporcionalmente me-
nos numerosos que na Armênia e ao
mesmo tempo tendo levado a mobili-
zação a um nível inédito na história,
os manifestantes mantiveram o
cunho pacifista, apesar da repressão
brutal. Também evitam qualquer
propaganda junto aos europeus. O
Conselho de Coordenação, formado
por Tikhanovskaya, recusou desse
modo, em 19 de agosto, a ajuda finan-
ceira da Comissão Europeia: esta
propunha destinar-lhe uma parte
dos fundos de apoio atribuídos à Bie-
lorrússia, para vir em socorro às “ví-
timas da repressão”, às “mídias inde-
pendentes e à sociedade civil”.

As reações das duas principais po-
tências europeias, França e Alema-
nha, impressionaram por sua timi-
dez, comparadas àquelas expressas
durante outras crises recentes.
Emmanuel Macron, engajado em um
“diálogo construtivo” com Moscou
desde a segunda metade de 2019,^2 não
reconheceu Tikhanovskaya como
presidente legítima em exílio, o que
fez no caso do opositor venezuelano
Juan Guaidó. Berlim e Paris reconhe-
cem Moscou como mediadora. Os
ministros de Relações Exteriores eu-
ropeus concordaram com uma base
mínima de sanções no encontro das
personalidades responsáveis pela re-
pressão, bem longe do arsenal em-
pregado após as eleições contestadas
em 2010. O envenenamento do oposi-
tor russo Alexei Navalny, transferido
para Berlim, onde se detectou um
neurotóxico de origem militar, pode-
ria, no entanto, forçar a chancelaria
alemã e, na esteira dela, Paris a se
reaproximar da postura mais comba-
tiva da Polônia e dos países bálticos,
que proibiram cerca de trinta perso-
nalidades, incluindo Lukashenko, de
entrar em seu território e reconhe-
cem a vitória de Tikhanovskaya.
Por enquanto, a Rússia não de-
monstra apego desmedido a Luka-

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