22 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
UMA LONGA QUERELA INTELECTUAL
E se nossas ancestrais tivessem feito pinturas rupestres em
Lascaux, caçado bisões, talhado ferramentas... Ao centrarem
em seu objeto de estudo o modelo patriarcal do século XIX e
sua ordem divina, os primeiros pré-historiadores construíram
mitos que inferiorizavam as mulheres. A abordagem científica
nos distancia dessas pressuposições para reconsiderar o
papel do “segundo sexo” na evolução humana
POR MARYLÈNE PATOU-MATHIS*
O homem pré-
-histórico também
era uma mulher
N
enhum argumento arqueológi-
co reforça a hipótese de que no
Paleolítico as mulheres tinham
um status social inferior ao dos
homens. Baseados na abundância de
representações femininas, arqueólo-
gos sugerem até mesmo que, estando
no centro das crenças, elas tinham
uma posição elevada nessas socieda-
des.^1 Outros pesquisadores susten-
tam que, nesses tempos remotos, as
sociedades eram matrilineares, ou
até mesmo matriarcais.
Com frequência, há uma confu-
são entre sociedade matriarcal – na
qual as mulheres detêm a autoridade
social e jurídica – e sociedade matri-
linear – sistema de parentesco ba-
seado na filiação pela mãe. O termo
“matriarcado” subentende uma do-
minação feminina, como indica sua
etimologia (do grego ἄρχειν, “dirigir”,
“comandar”). Se uma hierarquia ba-
seada na fêmea dominante e sua des-
cendência foi observada em diversas
espécies animais, em particular em
nossos primos próximos, os bono-
bos, e embora os Na, povo de origem
tibetana de valores longínquos de
Yunnan, na China, ainda fossem
uma sociedade matriarcal nos anos
1990,^2 o matriarcado hoje desapare-
ceu. Por outro lado, diversas socieda-
des, em todos os continentes, foram
matrilineares, e algumas ainda o
são. Constatando que, desde a Anti-
guidade, os homens tiveram, na
maioria das civilizações, um poder
econômico e social superior ao das
mulheres, muitos autores afirmam
que isso ocorreu também desde as
origens da humanidade. Recusam a
tese, defendida por muitos estudio-
sos do século XIX, da existência de
um matriarcado anterior ao patriar-
cado. Sua presença nas sociedades
pré-históricas, em debate há mais de
um século e meio, ainda é discutida
com fervor. Para muitos autores, “o
matriarcado original” seria apenas
um mito; para outros, teria existido
até a aparição do patriarcado duran-
te o Neolítico.^3
O MATRIARCADO ORIGINAL
Na promiscuidade do clã, que impe-
dia ter certeza de quem era o pai de
uma criança, a transmissão do pa-
rentesco só podia se fazer por meio
da mãe. Para o antropólogo polonês
Bronisław Malinowski (1884-1942) e
o jurista suíço Johann Bachofen
(1815-1887), essa filiação matrilinear
esteve presente nas primeiras socie-
dades humanas. Desde 1861, Bacho-
fen, baseando-se em mitos antigos e
em relatos de viagem, em particular
nos do padre jesuíta Joseph François
Lafitau (1681-1746), missionário na
Nova França (Canadá), sugere que “a
época primitiva” é a era da “gineco-
cracia” pelo direito maternal. O juris-
ta sustenta que as mulheres teriam
utilizado o “mistério” da maternida-
de para organizar a tribo, ao redor do
culto da “Grande Deusa” e da trans-
missão do poder de mãe para filha. A
existência de um matriarcado primi-
tivo, ou ao menos de uma igualdade
social homens-mulheres, foi susten-
tada por diversos antropólogos e filó-
sofos do fim do século XIX. Para eles,
foi no momento da passagem da eco-
nomia de predação (caçadores-cole-
tores) à da produção (agricultores e
pastores) que os homens teriam to-
mado o poder e instaurado a patrili-
nearidade, seguida do patriarcado.
Essa tese, que perdurou no começo
do século X X em alguns antropólo-
gos, foi retomada nos anos 1930. As
estruturas sociais das sociedades
pré-históricas teriam se modificado
ao longo do tempo. Teriam sido no
início clânicas, em seguida matriar-
cais e sedentárias e, por fim, familia-
res (em casais) e nômades. Basean-
do-se em muitas inexatidões, esse
esquema evolutivo linear proposto
pelo arqueólogo russo Piotr Efimen-
ko hoje está totalmente abandonado.
Quase trinta anos mais tarde, Ma-
rija Gimbutas, especialista na Era do
Bronze (–2.200 a –800), descreveu as
sociedades pré-indo-europeias como
“matrísticas”^4 (matrilineares). Estas
teriam perdurado durante em média
27 mil anos antes de serem progressi-
vamente suplantadas pela chegada, a
partir de 3 mil anos antes de nossa
era, de tribos nômades vindas das es-
tepes da Ásia central. As civilizações
mediterrâneas ditas “hipogeias” –
caracterizadas pelo sepultamento
dos defuntos em grutas artificiais ca-
vadas na rocha – dependeriam tam-
bém desse tipo de organização ma-
trilinear e teriam passado pela
mesma sorte em torno de 3.500 anos
antes de nossa era. As tribos de cava-
leiros teriam imposto às populações
indígenas matrilineares um sistema
patriarcal e guerreiro. Essa tese tam-
bém é contestada, em especial por-
que armas e traços de fortificações
datam de bem antes da chegada des-
ses grupos, e sua expansão teria sido
quase sempre pacífica.
Nos anos 1980-1990, várias histo-
riadoras norte-americanas sustenta-
ram, por sua vez, que as culturas pré-
-históricas eram matrilineares, mas
também mais igualitárias, mais pací-
ficas e menos hierarquizadas que as
sociedades patriarcais, o que é refu-
tado por vários pesquisadores. Para
muitos destes, as descrições das so-
ciedades matriarcais seriam apenas
“construções mitológicas sábias” de-
pendentes do romantismo de uma
“era de ouro” desaparecida, na qual a
dominação de um sexo sobre o outro
não existia.^5 A “ginecocracia” de Ba-
chofen dependeria da “fantasia”, se-
gundo Emmanuel Todd, para quem
“o status da mulher é na verdade mais
elevado nos sistemas de parentesco
indiferenciados que nas sociedades
matrilineares”.^6 O matriarcado origi-
nal seria apenas um mito! Seus de-
fensores se apoiam em argumentos
etnográficos, como o fazem seus
opositores, que citam diversos exem-
plos de sociedades tradicionais que,
igualitaristas de um ponto de vista
econômico e social, não o seriam nas
.