36 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
A geopolítica de acordo
com James Bond
Impecável modelo de homem branco ocidental em sua máxima performance, defensor
indestrutível do mundo livre: é isso que o agente 007 parece simbolizar sem falhas.
Ao longo de sessenta anos e 25 filmes, no entanto, o espião “britânico”
por vezes escapa de clichês e cruza fronteiras inesperadas...
POR ALIOCHA WALD LASOWSKI*
Í
cone pop e glamour da cultura
moderna, o personagem de James
Bond foi criado por Ian Fleming
em 1953, em Goldeneye, sua resi-
dência jamaicana. Jornalista da
agência de notícias Reuters, poste-
riormente agente de câmbio de um
banco de investimentos, Fleming
nasceu em 1908 e foi recrutado pelo
serviço de inteligência britânico du-
rante a Segunda Guerra Mundial.
Inspirando-se em sua própria expe-
riência como agente secreto, come-
çou a escrever um romance de espio-
nagem. Escrito em dois meses e
publicado por um editor londrino,
Casino Royale, primeiro episódio li-
terário da saga, foi adaptado em 1954
para a televisão norte-americana pe-
la rede de rádio e televisão CBS, com
o ator Barry Nelson; depois, em 1967,
para o cinema, em uma paródia assi-
nada por John Huston com a dupla
David Niven/Peter Sellers; e, enfim,
para o 21º filme da saga, em 2006,
com Daniel Craig, último ator que
desempenhou o papel principal.
O romance Casino Royale coloca
em cena o personagem 007, agente
secreto do MI6, serviço de inteligên-
cia britânico – poucos anos depois, o
escritor John Le Carré também pôs
seus espiões em ação, mas com um
estilo totalmente diferente... Para
criar seus heróis, Fleming se inspi-
rou em dois gêneros tradicionais:
por um lado, a investigação policial
norte-americana do período entre-
guerras, a narrativa hard-boiled de
detetive particular “duro na queda”,
da qual O falcão maltês (1930), de
Dashiell Hammett, é o principal mo-
delo; por outro lado, o romance in-
glês de aventuras geopolíticas, que,
como Os 39 degraus (1915), de John
Buchan, se dedica a evocar a ameaça
exercida no país pelos complôs de
perigosas sociedades secretas. Em
doze romances e duas coletâneas de
novelas, Fleming impôs seu (super-)
herói, aventureiro destemido e sedu-
tor irresistível.
James Bond tinha tudo para ser o
símbolo perfeito da Grande Albion
[Grã-Bretanha], do ponto de vista da
upper class (classe alta). Ex-aluno do
Eton College, escola da elite fundada
pelo rei Henrique VI, foi condecorado
com os títulos de Comendador da
Marinha e Cavaleiro da ordem mili-
tar de Saint-Michel e Saint-Georges.
O filme A serviço secreto de Sua Majes-
tade revela suas insígnias: ele des-
cende do baronete de Peckham, sir
Thomas Bond, morto em 1734, e sua
divisa familiar em latim é Orbis non
sufficit (“O mundo não basta”). Seu
nome é uma junção de Bond Street,
rua da alta costura e das galerias de
arte em Londres, e St James’s Street,
que sai da Rua Piccadilly, onde se en-
contra o mais antigo clube de gentle-
men [clubes privados, que datam do
século XVIII, frequentados pela clas-
se alta] da capital.
A primeira cena em que ele apa-
rece na tela, em 007 contra o satânico
Dr. No, acontece no Cercle des Am-
bassadeurs, um cassino em Londres.
Chique e desenvolto, circulando en-
tre estratagemas e efeitos especiais,
com um smoking em geral impecá-
vel, Bond parece um clichê inabalá-
vel, mundano e jogador. No entanto,
cada um de seus intérpretes dá seu
toque pessoal, ligado a seu próprio
percurso: assim, com o escocês Sean
Connery, que veio da classe operá-
ria, inicialmente marinheiro, entre-
gador ou fazendo trabalhos de cons-
trução, 007 representa o sucesso e o
êxito. Ao contrário, o inglês Roger
Moore adota o estilo aristocrata. Seu
humor excêntrico desdenha seu es-
pírito de sério, ele ri de si mesmo e
das convenções. O galês Timothy
Dalton americaniza o personagem.
Seu 007 corresponde aos códigos do
liberalismo econômico e à globaliza-
ção dos anos 1980... O último intér-
prete, Daniel Craig, conjuga as proe-
zas físicas e a melancolia inédita
para um herói sombrio e frágil...
Mas, em todas as suas variantes,
Bond permanece a personificação
da integridade do sujeito britânico e
da lealdade à Coroa.
Em suas missões, ele desfralda vá-
rias vezes a bandeira do Reino Unido,
em um paraquedas em 007 – O espião
que me amava, em um minijato em
007 contra Octopussy ou num subma-
rino em 007 – Na mira dos assassinos.
Ele leva com bravura pelo mundo in-
teiro as cores da Grã-Bretanha, du-
rante ações inscritas na situação geo-
política da época. No momento em
que estreou o primeiro filme, em 5 de
outubro de 1962, o Kremlin deu início
à operação militar Kama, com o envio
de submarinos soviéticos em direção
a Cuba, nas proximidades imediatas
da Flórida. O navio norte-americano
Yerkon detectou essa atividade e logo
advertiu o Pentágono. Enquanto o fil-
me conta que os serviços secretos bri-
tânicos protegem o Cabo Canaveral
de uma ameaça nuclear proveniente
Sean Connery durante as filmagens de “Os diamantes são eternos” em Amsterdam da ilha caribenha do Dr. No, a realida-
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