Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5


vadoras CitizenGo e HazteOir, basea-
das na Espanha. O alvo direto era a
crítica acadêmica, mas a estigmati-
zação da pesquisadora foi funda-
mental, mostrando o papel da desin-
formação nessas campanhas. A
demonstração passou longe do con-
f lito de opiniões, com discursos de
ódio e ameaças que se expressaram,
por exemplo, na queima de um bone-
co que representava Butler.
Na censura, na desinformação e
no discurso de ódio, o ataque ao
gênero converge na atuação de líderes
e partidos de extrema direita. Ali-
mentam-se reciprocamente. E esses
ataques podem servir para ampliar a
adesão popular a líderes cujas
agendas são, em outros aspectos,
antipopulares. Por isso é tão impor-
tante compreender a conexão atual
entre a agenda neoliberal e a
neoconservadora.
A ascensão da extrema direita se
dá em meio a processos econômicos
que ampliaram a concentração de
renda, restringiram garantias e tor-
naram amplos setores da população
mais vulneráveis. Com a redução de
investimentos sociais em nome da
austeridade, a responsabilidade esta-
tal e coletiva pelas mazelas humanas
se reduz. Resta, assim, o imperativo


do, corresponde nesse sentido à mo-
ralização de um imperativo prático:
que as famílias deem conta de si, já
que não virá da política e da respon-
sabilidade coletiva a resposta para
suas dificuldades. Mas corresponde
também ao adensamento da família
como realidade que resta, na medida
em que o público se torna mais den-
so, e os laços sociais, mais atravessa-
dos pela desconfiança.
O esgarçamento do público mos-
tra que duas das agendas fortes na
eleição e no governo de Bolsonaro, a
neoliberal e a moral, se encontram na
aposta na família como unidade so-
bre a qual recaem as responsabilida-
des de que o Estado se esquiva e os
controles a que se propõem. O espaço
público aparece na forma da ameaça.
Se não é capturado pelo privado, isto
é, monetarizado e transformado em
capital, é assunto de polícia. E isso
nos conecta a uma terceira agenda, a
da militarização. No processo atual
de erosão da democracia, ela tem pa-
pel fundamental e se faz “de dentro”,
tornando desnecessário “o golpe”,
enquanto um cotidiano político de
rupturas é normalizado. O direito à
oposição política, por exemplo, está
em risco na mesma medida em que o
Estado de polícia se expande. Mas a
militarização vai além disso. Das es-
colas à abordagem da política am-
biental, do descaso com a vida da po-
pulação indígena à resposta trágica à
Covid-19, trata-se da instauração, po-
lítica por política, declaração por de-
claração, de uma ordem que é, a cada
dia, menos democrática. Não teria
como desenvolver aqui a relação en-
tre a militarização e a afirmação de
uma masculinidade para a reafirma-
ção dos valores patriarcais e hetero-
normativos, diante de décadas de
avanços significativos produzidos
pelos movimentos feministas e LGB-
TQ. Não é à toa que, nesse contexto,
esses mesmos movimentos passam a
fazer parte do rol de inimigos a serem
combatidos.
O ataque ao gênero dispara e jus-
tifica a censura e a violência contra
grupos identificados como desvian-
tes. É estratégico para naturalizar de-
sigualdades e responsabilizar as fa-
mílias e, nelas, as mulheres, enquanto
se produzem sociedades da precarie-
dade, marcadas pela vulnerabiliza-
ção de amplos setores da população e
pela repressão da contestação. Como
esse ataque incide nos valores que
circulam cotidianamente em uma
sociedade, colabora também para a
produção de preferências não demo-
cráticas, dando densidade social ao
autoritarismo.

*Flávia Biroli é professora do Instituto de
Ciência Política da Universidade de
Brasília.

de que cabe a cada um lidar com suas
próprias mazelas e, a cada família, a
“gestão” do bem-estar dos seus.
Como discuto em outros textos, ao
defenderem “a família” das ameaças
da “ideologia de gênero”, atores con-
servadores e de extrema direita pro-
curam canalizar os afetos em contex-
tos nos quais as inseguranças são
reais, mas obviamente ultrapassam
os deslocamentos nas práticas e na
moral sexual – que, é claro, também
existiram de maneira significativa
nas décadas recentes. Não são esses
que têm ampliado a vulnerabilidade
das famílias e dos indivíduos, como
sabemos. As restrições de direitos
trabalhistas e previdenciários, do
acesso à saúde e à educação ampliam
as inseguranças e a possibilidade de
cuidar das pessoas mais próximas.
De maneira muito simples, eu diria
que é preciso disputar as narrativas
sobre o que torna as famílias mais
vulneráveis e as vidas mais precárias.
Sem isso, fica difícil conter a poten-
cial adesão popular a políticos autori-
tários que acenam com a promessa
da superação das inseguranças pela
reconstrução da “ordem” moral.
Jair Bolsonaro expandiu sua ima-
gem e suas alianças com o alinha-
mento à agenda contrária ao gênero

muito antes de ser candidato à Presi-
dência. Sua oposição estridente ao
Programa Brasil Sem Homofobia,
após audiência pública na Câmara
dos Deputados, em 2010; ao Projeto
de Lei Menino Bernardo (PL
7671/2010), que criminaliza castigos
físicos impostos às crianças; e à de-
cisão do STF em favor da união entre
pessoas do mesmo sexo, de 2011,
abriram-lhe um novo ciclo de visibi-
lidade. Ao fazer comentários como o
de que seria legítima a agressão físi-
ca, por parte dos pais, quando perce-
bem que seu filho é gay (na Comis-
são de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados, em 1º de dezembro
de 2010), seu rechaço dos direitos
humanos ganharia mais uma frente.
O ataque à igualdade de gênero e à
diversidade sexual se somou a suas
agendas históricas de imposição da
“ordem” em detrimento do Estado de
direito – defesa da violência policial
e da ampliação do acesso a armas, da
ditadura de 1964 e da tortura. E, cla-
ro, facilitou sua aproximação a seto-
res políticos religiosos conservado-
res, realizada com mais afinco a
partir de 2016, quando já preparava
sua candidatura à Presidência. Seu
batismo pelo pastor Everaldo no Rio
Jordão, em maio de 2016, é um episó-
dio ilustrativo.
O ataque a direitos numa perspec-
tiva de gênero abriu caminho para
que Bolsonaro apresentasse ao elei-
torado uma proposta de “ordem” fei-
ta à base da bala e da Bíblia, da vio-
lência direta e do radicalismo moral.
Nela, adversários são transformados
em inimigos que, no limite, podem
ser eliminados. O “outro”, estigmati-
zado e reduzido em sua humanidade,
justifica a violência. A igualdade fun-
damental é, assim, colocada em xe-
que na estratégia e no conteúdo dos
projetos autoritários que dão mate-
rialidade ao governo atual.
Já eleito presidente, em seu curto
discurso inaugural, em 1º de janeiro
de 2019, Bolsonaro alçaria o combate
à “ideologia de gênero” e ao “politica-
mente correto” a prioridades de seu
governo. Como foi notado por muita
gente, fez isso enquanto deixou de la-
do o combate à desigualdade, que fi-
gurou de um modo ou de outro no
discurso de todos os seus antecesso-
res. Acho importante conectar as
duas coisas: trata-se de uma ordem
social e moral que se efetiva na
desigualdade.
O ataque ao gênero compõe a re-
cusa mais ampla a políticas pautadas
por valores igualitários e pelo respei-
to à diversidade. Ao mesmo tempo, é
importante na recusa da política co-
mo alternativa, de um imaginário co-
letivo e democrático para a supera-
ção das inseguranças. O slogan “Con
mis hijos no te metas”, já menciona-

Em 2017, grupos extremistas tentaram impedir uma palestra de Judith Butler

© Rovena Rosa/Agência Brasil

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