6 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito
mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento
e, principalmente, da eleição de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à
tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições
de controle do sistema político
POR LEONARDO AVRITZER*
UMA ANÁLISE DA POLÍTICA BRASILEIRA
E
m 2016, alguns meses antes do
impeachment da presidenta Dil-
ma Rousseff, abri meu novo li-
vro, intitulado Impasses da de-
mocracia no Brasil, com as seguintes
palavras: “O Brasil se encontra hoje
no rol das nações com democracias
fortes e consolidadas. Por qualquer
medida significativa proposta por
teorias que medem o estado da arte
da democracia, o Brasil se encontra
em uma posição boa. Se tomarmos
uma perspectiva histórica, por exem-
plo, o Brasil tem uma democracia
mais forte hoje do que ele teve no pe-
ríodo 1946-1964, já que não houve
desde 1985 nenhuma tentativa dos
militares de intervir na política, tal
como ocorreu em 1954, 1956 e 1961.
Ao mesmo tempo, se tomarmos como
medida o número de transmissões de
poder, o Brasil, com a posse recente
da presidenta Dilma para um segun-
do mandato, já teve mais transmis-
sões democráticas do poder, neste
período, 1985-2015, do que em qual-
quer outro período. Quando adota-
mos a perspectiva comparada, perce-
bemos que a democracia brasileira
passou por menos percalços do que
as democracias dos países vizinhos,
em especial as democracias argenti-
na e chilena. No caso argentino, di-
versos presidentes não conseguiram
completar o seu mandato, casos de
Alfonsín e De la Rua. Assim, nenhum
presidente não peronista completou
o seu mandato no país vizinho. Já no
caso do Chile a constituição pinoche-
tista continua vigorando e impondo
um regime eleitoral que impede a sua
mudança constitucional. Portanto,
seja na perspectiva internista, seja na
perspectiva comparada a democracia
brasileira fez importantes avanços”.
Evidentemente essa é uma análise
ultrapassada da democracia brasilei-
ra. O impeachment de Dilma Rous-
seff abriu um caminho de degrada-
ção institucional muito mais rápido
do que seria possível imaginar na-
quele momento. A partir desse acon-
tecimento e, principalmente, da elei-
ção de Jair Bolsonaro, novos
elementos se acrescentam à tendên-
cia antidemocrática, tais como o ata-
que do Poder Judiciário e das institui-
ções de controle do sistema político.
Esse ataque permitiu o afastamento,
pelo STF, do presidente da Câmara
dos Deputados e a tentativa de remo-
ção do presidente do Senado, em
- Tais fatos organizaram-se em
um crescendo a partir da suspensão
de nomeações ministeriais, em espe-
cial a nomeação do ex-presidente Lu-
la para a Casa Civil, e da suspensão
do indulto natalino, ambas prerroga-
tivas exclusivas do presidente da Re-
pública. A intervenção no Rio de Ja-
neiro e a tentativa de uso das Forças
Armadas na greve dos caminhonei-
ros em maio de 2018 completaram a
equação de violação de direitos e de
adesão a uma política de segurança
pública anticidadã. O auge desse es-
tado de coisas se evidenciaria com a
justificação aberta da violência por
candidatos que, não por acaso, aca-
baria se manifestando explicitamen-
te no atentado contra o próprio Bol-
sonaro e em ações de seus apoiadores
quando indivíduos foram agredidos
ou até mesmo assassinados, como no
caso do capoeirista Moa do Katendê,
esfaqueado em Salvador durante a
eleição de 2018. Neste artigo tentarei
mostrar, em primeiro lugar, a centra-
lidade do impeachment no processo
de degradação institucional no Bra-
sil; em seguida demonstrarei como o
Judiciário foi politizado e instrumen-
talizado por Sérgio Moro, para então
mostrar como o bolsonarismo aposta
no aprofundamento do processo de
degradação institucional.
IMPEACHMENT:
ENTENDENDO O PROCESSO
O impeachment da presidenta Dilma
representou uma reversão de com-
portamentos institucionais que tive-
ram sua origem no início da redemo-
cratização brasileira. A instauração
da Nova República, com a retirada dos
militares do exercício do poder políti-
co e a extinção de seu poder de veto
sobre resultados eleitorais, inaugurou
uma mudança de perspectiva em re-
lação ao processo sucessório e à de-
mocracia no Brasil. As primeiras elei-
ções do período da Nova República
foram marcadas por uma mudança
de comportamento no que tange ao
reconhecimento de resultados eleito-
rais. Apesar da demora no processo de
apuração eleitoral em 1989, todos os
atores envolvidos nele esperaram o
resultado antes de se posicionar sobre
o segundo turno. O mesmo aconteceu
nas eleições de 1994, 1998, 2002, 2006
e 2010. Assim, de alguma maneira, é
possível argumentar uma mudança
no comportamento das elites políti-
cas que sugeria a transformação das
eleições democráticas no único jogo
na cidade. No entanto, desde o início
da Nova República, elementos antide-
mocráticos estavam presentes em
nossa institucionalidade, ainda que
atuassem de modo bastante discreto:
o impeachment e a possibilidade de
intervenção dos militares nas ques-
tões de ordem interna.
O impeachment no Brasil não se-
gue o padrão internacional do presi-
dencialismo, de acordo com o qual
deve ser um evento muito raro e, para
tal, não deve envolver questões ad-
ministrativas (maladministration)
ou de oposição política. Ainda assim,
entre os casos de impeachment, o do
ex-presidente Collor teve fortes ele-
mentos consensuais, envolveu a ideia
da remoção de um presidente mal
avaliado, mas também incorporou
um forte consenso entre as institui-
ções políticas, a ponto de, na votação
sobre seu afastamento na comissão
especial da Câmara dos Deputados, o
presidente ter tido apenas um voto, o
do líder do governo.
O impeachment da presidenta
Dilma Rousseff foi baseado em alega-
ções extremamente frágeis, porque a
ideia de pedalada fiscal não consti-
tuía um diferencial de comporta-
mento em relação a outros presiden-
tes ou governadores.^1 Além disso,
temos várias evidências posteriores
ao impeachment de acordos políticos
com o intuito de afastar Dilma. A
principal consequência do impeach-
ment recente é um relativismo insti-
tucional a partir do qual não existem
mais interesses gerais na democracia
brasileira e na atuação das institui-
ções. O fato de o processo de impea-
chment do ex-presidente Michel Te-
mer não ter prosperado, a despeito
das evidências de um governo com-
pletamente envolvido com a corrup-
ção, acentuou a desconfiança dos
brasileiros na democracia. Nas pes-
quisas que realizamos no Instituto
da Democracia da UFMG (w w w.ins-
titutodademocracia.org) foi possível
perceber uma intensa degradação do
apoio dos brasileiros à democracia ao
longo de 2018, o que abriu espaço pa-
ra a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro.
Assim, é possível dizer que o impea-
chment da presidenta Dilma foi mais
do que um impeachment. Ele foi o
destampar de uma panela de pressão
que permitiu uma volta ao passado
no comportamento das elites não de-
mocráticas no Brasil.
CONDENAÇÃO DO
EX-PRESIDENTE LULA
Tal como no caso da competição polí-
tica, o Brasil colocou em prática estru-
turas fortes de autonomia judicial en-
tre 1988 e 2014. O Judiciário assumiu
prerrogativas de independência em
relação ao Executivo, mas também
em relação à ampliação de direitos,
com decisões-chave, como Raposa
Serra do Sol e implantação de cotas no
ensino superior. Ainda assim, vínha-
mos de um Judiciário oligárquico, tra-
dição que não foi rompida nem mes-
mo com a instituição do concurso
público, uma vez que ele não impediu
as famílias de operarem ou pela via do
quinto da OAB ou pela via de relações
espúrias entre juízes e escritórios de
advocacia. Ainda assim, é possível
apontar um saldo positivo na maneira
como o Poder Judiciário foi adquirin-
do novas prerrogativas nesse período.
A Operação Lava Jato mudou essa
equação, relativizando a estrutura de
direitos de defesa no combate à cor-
rupção. Porém, ainda mais grave, ela
acabou por fornecer prerrogativas
absolutas a um juiz de primeira ins-
tância que, como ficou comprovado,
tinha projetos políticos e estava dis-
posto a perseguir judicialmente um
ex-presidente. Sérgio Moro, no caso
do ex-presidente Lula, orientou a de-
lação premiada, aceitou a denúncia,
legalizou a posse de um apartamento
por provas indiretas e alegou ter fó-
rum para todas essas ações, apesar de
o STF só ter lhe concedido foro sobre
as ações ligadas à Petrobras. Isso de-
pois de ser censurado pelo ex-minis-
tro Teori Zavascki acerca de vaza-
Democracia e
degradação institucional
.