DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11
des, ciclones e outros eventos meteo-
rológicos extremos também têm cau-
sado enormes prejuízos às vidas e à
economia urbana. São muitas as con-
sequências, e não se pode mais dizer,
como anos atrás, que as mudanças
climáticas são uma ameaça silencio-
sa. São, ao contrário, uma ruidosa
realidade do tempo presente.
No entanto, apesar dos evidentes
impactos, os governos locais estão
atrasados em assumir sua responsa-
bilidade para a mitigação e a adapta-
ção. No Brasil, na esteira do Plano
Nacional de Adaptação à Mudança
do Clima, instituído pela Portaria n.
150, de 10 de maio de 2016, caberia
aos municípios elaborar e colocar em
prática planos locais de adaptação.
Se as políticas do governo federal
nessa área sofreram fortes retroces-
sos nos anos recentes, em muitos
municípios elas nem sequer existem.
Igualmente, salvo raras exceções,
os governos locais não estão suficien-
temente preparados para responder a
eventos danosos. O ordenamento ter-
ritorial tem sido mais fator de exclu-
são e injustiças socioambientais do
que de prevenção de desastres.
O futuro das cidades diante da
emergência climática requer a efeti-
vação de uma agenda imediata de mi-
tigação e adaptação que se sustente
em soluções baseadas na natureza.
De acordo com a Plataforma de Políti-
cas de Soluções Baseadas na Nature-
za, da Universidade de Oxford, elas
podem ser entendidas como “ações
que envolvem trabalhar e melhorar
os hábitats naturais para o bem da so-
ciedade, por exemplo, por meio de
restauração, manejo e proteção”.^2
Significa dizer que a natureza é parte
importante da solução, o que soa ób-
vio, embora não seja uma prática nas
políticas públicas. Preservar ou res-
taurar ecossistemas auxilia sobrema-
neira no enfrentamento das mudan-
ças do clima. No entanto, o modelo de
urbanização tem caminhado no sen-
tido contrário, com crescimento hori-
zontal do tecido urbano sem infraes-
trutura adequada e avançando sobre
territórios que deveriam ser conser-
vados. Sobretudo, trata-se de uma ló-
gica desigual, excludente e injusta,
que não possibilita alternativas ade-
quadas a grande parte da população.
Outro componente que deve ne-
cessariamente ser considerado pelos
governos locais é a efetivação da
função socioambiental da terra, da
propriedade e da cidade, elemento
essencial para garantir uma distri-
buição mais equitativa dos benefí-
cios de qualquer sistema econômico,
assim como uma abordagem mais
equilibrada e sustentável do desen-
volvimento. Envolve também garan-
tir segurança de posse, direito ao
território e à moradia adequada, ser-
viços básicos e infraestrutura em to-
dos os tipos de assentamentos, tanto
formais quanto informais. Isso não
significa convalidar situações de
vulnerabilidade socioambiental de
assentamentos precários, e sim dar-
-lhes tratamento justo e condizente
com os parâmetros de direitos hu-
manos em processos de regulariza-
ção urbanística e fundiária, com
melhorias da qualidade ambiental.
A restauração ambiental em be-
nefício da sociedade em geral, priori-
zando aqueles com maior necessida-
de, é uma obrigação dos governos
locais e uma oportunidade para as
comunidades criarem alternativas de
trabalho sustentáveis e zelarem pelo
meio ambiente em que vivem.
Uma abordagem participativa sob
a liderança das comunidades tam-
bém deve ser adotada para abordar
perdas e danos, evitar despejos força-
dos e realojar, como último recurso,
as comunidades afetadas pelas con-
sequências das mudanças climáti-
cas, como secas, inundações, desli-
zamentos de terra e aumento do nível
do mar, seguindo os padrões de direi-
tos humanos de moradia, serviços
básicos, direitos dos trabalhadores, e
assim por diante.
Paralelamente, as cidades devem
reconhecer que a crise do clima deri-
va de um modelo de produção e con-
sumo que acirra as desigualdades so-
ciais e espaciais. É preciso romper
com esse ciclo e evitar que as respos-
tas públicas excluam ainda mais a
população de baixa renda, crimina-
lizando-a ou promovendo uma gen-
trificação por motivação ambiental
nos territórios.
As chamadas “políticas verdes”
não podem ser um produto de luxo
destinado apenas às camadas mais
abastadas dos centros urbanos. Jar-
dins verticais em fachadas de pré-
dios, comumente vistos em áreas va-
lorizadas, contribuem muito menos
para a captura de carbono do que a
ampliação de áreas verdes nas peri-
ferias ou do que processos de urba-
nização e melhorias do ambiente em
assentamentos populares, essas,
sim, medidas relevantes de enfrenta-
mento à crise.
Por seu turno, os mecanismos de
exclusão não operam apenas com ba-
se em capacidades econômicas. Mar-
cadores de gênero, raça, etnia e ori-
gem, entre outros, fazem parte da
equação que impõe a parte da popu-
lação impactos desproporcionais da
crise climática. As políticas locais não
podem se olvidar de uma perspectiva
que trate todas essas questões estru-
turais de forma interseccional.
É fundamental a participação dos
habitantes em todos os processos de
planejamento, inclusive os de mitiga-
ção dos efeitos das mudanças climá-
ticas. Essa participação deve dar
atenção especial às propostas que
partem das necessidades das mulhe-
res, indígenas, pessoas negras, mi-
grantes, pessoas com deficiência,
crianças, jovens e pobres. A constru-
ção de sociedades resilientes ao cli-
ma começa com a compreensão dos
desafios enfrentados pelas comuni-
dades vulneráveis.
Por outro lado, mais do que lidar
com os efeitos em seus territórios, as
cidades precisam reconhecer sua
responsabilidade como causadoras
da crise. De acordo com especialistas
do World Resources Institute (WRI),
elas consomem 65% da energia pro-
duzida globalmente e com tendên-
cias de aumento, sendo responsáveis
por 70% das emissões de gases de
efeito estufa na atmosfera relaciona-
dos à energia.
As cidades também geram resí-
duos em excesso e, no caso brasileiro,
os destinam de forma inadequada. A
insuficiência ou total ausência de
uma política de separação de reciclá-
veis e orgânicos e a consequente des-
tinação incorreta fazem que um volu-
me gigantesco de resíduos seja levado
a aterros, onde sua decomposição
produzirá mais gases de efeito estufa.
Outro fator relevante que contribui
para o agravamento das mudanças do
clima é o modelo de transporte basea-
do preponderantemente em combus-
tíveis fósseis e no automóvel indivi-
dual. Parte significativa da poluição
gerada nas cidades advém do sistema
de mobilidade, ainda pouco afeito a
tecnologias de carbono zero, ao trans-
porte coletivo e à mobilidade ativa.
É preciso admitir que as cidades
são culpadas tanto quanto vítimas e,
nesse sentido, investir fortemente em
mudanças de paradigmas com rela-
ção a energias limpas, economias de
zero carbono e investimentos verdes,
mas sem perder de vista que essas
transformações não podem se desco-
lar de uma perspectiva de justiça e
equidade social, racial e de gênero,
comprometida com a democracia e o
direito à cidade de todas as pessoas.
O futuro das cidades diante da
emergência climática precisa ser um
futuro de direitos, de equidade e ci-
dadania inclusiva e de gestão coletiva
dos bens comuns.
*Henrique Botelho Frota é assessor da Pla-
taforma Global pelo Direito à Cidade e coorde-
nador executivo do Instituto Pólis, organização
integrante do Observatório do Clima.
1 No Relatório Especial Global Warming of
1.5°C (2018), o IPCC reconhece o aumento
de temperatura global em 1 °C e estabelece
cenários de impactos para um aumento de
1,5 °C e para um aumento de 2 °C.
2 Nature-Based Solutions Policy Platform [Pla-
taforma política de soluções baseadas na na-
tureza], University of Oxford. Disponível em:
https://www.nbspolicyplatform.org.
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© Gilberto Olimpio/Unsplash
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