Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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10 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


Emergência climática


e o futuro das cidades


Tempestades, ciclones e outros eventos meteorológicos extremos têm causado enormes
prejuízos às vidas e à economia urbana. São muitas as consequências, e não se pode
mais dizer, como anos atrás, que as mudanças climáticas são uma ameaça silenciosa.
São, ao contrário, uma ruidosa realidade do tempo presente

POR HENRIQUE BOTELHO FROTA*

GOVERNOS LOCAIS NÃO ESTÃO PREPARADOS


“P


ensar globalmente e agir
localmente.” Essa frase,
que circula livremente en-
tre grupos de acadêmicos,
ativistas, servidores públicos e tam-
bém entre a iniciativa privada, tem
inf luenciado diferentes áreas há
anos, de teorias sociológicas a agên-
cias de publicidade e propaganda.
Seu berço vem dos movimentos so-
cioambientais e da sociologia da glo-
balização. A ideia por trás dela é de
que as escalas global e local não se
excluem mutuamente, estando, pelo
contrário, imbricadas. O local é um
aspecto do global, com ele interagin-
do de forma dinâmica.
A Agenda 21, conhecido documen-
to entre os resultantes da Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Am-
biente e Desenvolvimento – RIO 92, é
um dos corolários desse pensamento.
Mais do que uma tentativa de integrar
diferentes temas, a Agenda 21 repre-
sentou um chamado público para a
ação coordenada entre as distintas es-
calas geográficas e organizacionais.
Reconhece que a mudança necessária
não pode simplesmente depender das
políticas dos Estados nacionais, mas
da articulação destas com iniciativas
dos poderes subnacionais, das insti-

bre Mudanças Climáticas (IPCC, na
sigla em inglês) indicam que as ativi-
dades humanas já causaram um au-
mento médio da temperatura global
de cerca de 1 °C, comparando-se com
os níveis pré-industriais.^1 Os impac-
tos são perceptíveis, com a alteração
de ecossistemas oceânicos e terres-
tres, maior frequência de eventos cli-
máticos e meteorológicos extremos e
elevação do nível do mar.
O quadro atual, que tende a se
agravar, é de que a humanidade con-
viverá com uma estranha combina-
ção de estiagens e chuvas intensas,
motivada por regimes hídricos irre-
gulares. Fenômenos como El Niño e
La Niña serão ainda mais frequentes.
Processos de desertificação afetarão
mais regiões e abalarão a produção de
alimentos. A elevação do nível do mar
levará a migrações forçadas e ao apa-
recimento de refugiados do clima. Tu-
do isso e mais um pouco acarretando
consequências concretas nos territó-
rios, causando danos às pessoas e
mais acentuadamente aos segmentos
vulneráveis de nossa população.
E, se ultrapassamos a marca de
mais da metade da população mun-
dial vivendo em cidades – mais de
85% no caso brasileiro –, é aí que
muitos dos efeitos das mudanças do
clima serão sentidos e precisam ser
encarados de forma responsável.
As cidades têm enfrentado maio-
res problemas de abastecimento hí-
drico gerados pela redução dos níveis
dos reservatórios e sofrem com ainda
mais inundações e alagamentos de-
correntes de chuvas intensas combi-
nadas com altos níveis de impermea-
bilização do solo urbano. A qualidade
do ar também vem sendo afetada,
causando aumento de doenças respi-
ratórias na população. Cidades lito-
râneas já sofrem com a elevação dos
níveis do mar e a erosão costeira, sen-
do relativamente alta a probabilidade
de perderem parte de seus territórios
com o avanço das águas. Tempesta-

tuições locais, das empresas e dos
grupos da sociedade civil.
Já não se pode dizer que a ideia é
nova. São no mínimo trinta anos
desde que começou a ser veiculada.
Chegou a ser anunciada como a gran-
de máxima das questões socioam-
bientais para o século X XI por vários
especialistas. Entretanto, sua reali-
zação prática e aplicação no âmbito
das políticas públicas está bem dis-
tante do ideal.
Quando se fala em mudanças cli-
máticas, um fenômeno multifaceta-
do de proporções mundiais e conse-
quências tão profundas, ainda
prepondera uma visão de que cabe
aos Estados nacionais e aos organis-
mos multilaterais a responsabilidade
pela mitigação de impactos e pelas
ações de redução da emissão de gases
de efeito estufa. O debate não rara-
mente é internacionalizado e travado
em arenas nas quais os governos dos
países são os protagonistas, com
pouca ou nenhuma voz para gover-
nos locais ou sociedade civil.
É bem verdade que muitas das ini-
ciativas necessárias para enfrentar a
crise socioambiental e climática de-
pendem de medidas macroeconômi-
cas, de regulação de setores produti-

vos, de políticas de proteção ambiental
de grande escala, de mudanças nos
marcos regulatórios na legislação na-
cional, entre outras medidas que são
de competência dos poderes nacio-
nais. No entanto, é uma ilusão pensar
que a resposta virá unicamente desse
lugar, ou que virá de um só lugar.
Uma crise de tão grandes propor-
ções exige uma metamorfose na geo-
política global para reconhecer que
existem outros atores que necessitam
de espaço na mesa. A resposta estará
no esforço articulado de todos os se-
tores da sociedade e dos poderes pú-
blicos. As cidades e os grupos organi-
zados da sociedade civil não podem
mais ficar nos espaços marginais de
decisão, bradando para serem escu-
tados. Até mesmo porque são eles
que, em seus territórios, encontram-
-se face a face com as consequências
da crise, tendo de lidar com eventos
climáticos extremos cada vez mais
frequentes.
Há tempos que as mudanças do
clima não são mais assunto do futu-
ro. Elas estão presentes e intensifi-
cam-se, com consequências diretas
nas cidades.
Estudos científicos referendados
pelo Painel Intergovernamental so-

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