DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13
trabalha de seu “refúgio de paz situa-
do na f loresta” em Sologne ou em um
espaço de coworking em Vierzon,
economizando dessa forma tempo
para “praticar a cerâmica e a fotogra-
f ia” (Le Monde, 24 jul.); Claire, profes-
sora de ioga, que encontrou a felici-
dade em sua segunda casa em
Charente durante o confinamento e
não quer mais ir embora (Marie Clai-
re, 11 nov.); Charles e Magali, que não
suportaram o retorno à cidade e se
estabeleceram definitivamente no
Loiret (Le Figaro Magazine, 23 out.). E
também há aqueles que, como Yann,
optam pela “corresidencialidade” –
uma casa em Nièvre, para a natureza,
e um espaço em Paris, para os filhos
estudantes e reuniões profissionais
(Le Parisien, 23 out.). A imprensa nor-
te-americana e a britânica produzem
exatamente os mesmos artigos, exce-
to por seus protagonistas, chamados
Kathlyn e Andrew, e que, em vez dis-
so, planejam migrar para o Vale do
Hudson ou Kent.
Em poucos meses, as representa-
ções da geografia social francesa fo-
ram invertidas. Quando, antes da
pandemia, os jornalistas se interes-
savam pelo destino do “interior” ou
do “campo”, era geralmente enfo-
cando os aspectos mais miseráveis
da sociedade, para evocar os “cole-
tes amarelos”, o voto no partido Rea-
grupamento Nacional (Rassemble-
ment Nacional, ex-Frente Nacional),
a escassez de empregos, o fecha-
mento de pequenos comércios, o de-
saparecimento das estações, o preço
do combustível, a monotonia das
áreas residenciais, a ausência de ser-
viços públicos, a escassez de trans-
portes coletivos... Esses problemas
desapareceram da mídia: tudo que
sai das grandes cidades agora parece
se resumir a uma bucólica casa com
jardim. Por outro lado, as metrópo-
les, que há um ano eram só criativi-
dade, inovação e inteligência, apare-
cem essencialmente como algo
pouco atraente.
Essa reversão atesta uma incapa-
cidade de ver o país de outra forma
que não pelo prisma das classes do-
minantes. Se Charles e Magali fica-
ram felizes, o confinamento não foi
um prazer para todos nas pequenas
cidades e no campo. Muitos residen-
tes continuaram a ter de ir até o tra-
balho; os agricultores ficaram sem
braços para colher seus produtos; os
idosos ficaram ainda mais isolados;
numerosas pequenas lojas já frágeis
receberam o golpe de misericórdia,
para não mencionar a dificuldade de
hospitais mal equipados (ao contrá-
rio dos de Paris)...^5 Em tais circuns-
tâncias, possuir um jardim oferece
pouco consolo.
Além disso, os citadinos no exílio
não se juntam ao “campo” ou à “Fran-
ça periférica”, mas a um certo campo
próspero e atraente: o das segundas
residências e das férias, no sul e no
oeste do país, ou na órbita das gran-
des cidades. Na verdade, todas as
áreas rurais, todas as pequenas cida-
des não precisavam se vingar das me-
trópoles. Algumas já iam muito bem
antes do coronavírus, com uma de-
mografia dinâmica e um mercado
imobiliário f lorescente: Perche, Bre-
tanha, Dordonha, Landes, Vaucluse,
Vexin, Gâtinais... Frequentemente
apresentada como homogênea, a
“França periférica” é atravessada por
grandes fraturas que um êxodo de
moradores de cidades qualificados
apenas acentuaria.
Além disso, a chegada de mora-
dores ricos da cidade ao campo nem
sempre é uma bênção. Claro, isso
significa mais habitantes e, portan-
to, mais clientes para comércios e ar-
tesãos, mais impostos locais, poten-
ciais criações de empregos... Mas
ainda é necessário que os recém-
-chegados consumam nas lojas da
região (e não on-line), que traba-
lhem ali (e não para uma empresa
sediada em Paris), enfim, que se
misturem com o tecido local e desis-
tam de importar seus hábitos urba-
nos para o campo, de conceber o ru-
ral como uma extensão, uma
decoração de seu modo de vida cita-
dino. No entanto, como a geógrafa
Greta Tommasi mostrou por meio do
caso da Dordonha, nem sempre é es-
se o caso:^6 antigos e novos habitantes
muitas vezes têm dificuldade de se
misturar, não frequentam os mes-
mos lugares, não têm os mesmos cír-
culos de sociabilidade. A chegada de
uma população abastada também
gera um fenômeno de “gentrificação
rural”, que indexa os preços dos imó-
veis com base nos salários das gran-
des cidades, impedindo que alguns
autóctones, em particular jovens,
consigam moradia.
O êxodo tão anunciado não está
escrito, no entanto. É certo que os
preços dos imóveis parisienses para-
ram de subir desde março – depois
de terem se multiplicado por quatro
em 25 anos^7 –, enquanto disparam
na região periférica da capital co-
nhecida como grande coroa, onde as
menores casas de condomínio de su-
búrbio são vendidas em poucos dias.
Em sites de classificados, as pesqui-
sas por residências próximas às
grandes cidades nunca foram tão
numerosas. E são unânimes: os mo-
radores das metrópoles sonham com
jardins e pequenas cidades. Mas,
quando se trata de moradia, geral-
mente há um longo caminho a per-
correr. Todos precisam conciliar
seus anseios com o mercado de tra-
balho, a disponibilidade de serviços,
a proximidade com a família e os
amigos, a reputação das escolas, os
preços dos imóveis etc. Portanto, os
desejos nem sempre se realizam.
Aliás, os moradores das cidades
não esperaram o coronavírus para
sonhar com o verde. Já em 1945, a
primeira vez em que o Instituto Na-
cional de Estudos Demográficos
(Ined) perguntou à população sobre
seus desejos em matéria de moradia,
56% dos parisienses (e 72% dos fran-
ceses) responderam que gostariam
de viver em uma casa com jardim. “A
maioria dos franceses gostaria de ter
um terreno, cultivar seu jardim e ver
sua casa despontar em meio a can-
teiros de f lores e leguminosas, longe
da cidade, e só deles”, constataram
os autores do estudo.
Desde então, toda pesquisa veio
confirmar isso: a pequena proprieda-
de individual representa um ideal pa-
ra sete a oito franceses em cada dez.
Ao contrário das autoridades públi-
cas norte-americanas, que encoraja-
ram o desenvolvimento de extensos
conjuntos nos subúrbios, os tomado-
res de decisão franceses por muito
tempo resistiram a essa tentação. No
final da Segunda Guerra Mundial,
não obstante as conclusões do Ined,
eles privilegiaram a habitação coleti-
va e os grandes conjuntos habitacio-
nais. “Devemos construir com rapi-
dez e muito para recompor o país e
absorver o crescimento populacio-
nal”;^8 o desejo de se destacar do regi-
me de Vichy, fervoroso defensor da
ideologia de pavilhões, estava vivo e
todos se lembravam do fiasco dos
“conjuntos habitacionais defeituo-
sos” do período entreguerras, aque-
les casebres erguidos por incorpora-
doras corruptas no meio dos campos
e da lama e sem manutenção. Para
centenas de milhares de “mal aloja-
dos”, o sonho de uma pequena pro-
priedade se transformara em um pe-
sadelo e foi preciso quase vinte anos
para reparar os danos.
Portanto, as autoridades há muito
tempo enfatizam a habitação coleti-
va. Elas só reabriram as comportas
do desenvolvimento de casas nos su-
búrbios a partir da década de 1970,
causando um desgaste progressivo
no espaço rural. Durante cinco déca-
das, os estudantes franceses apren-
dem que o equivalente a um departa-
mento é concretado a cada sete a dez
anos. Por vinte anos, no entanto, os
governos têm definido a luta contra a
expansão urbana como um objetivo
prioritário – na Lei de Solidariedade e
Renovação Urbana (SRU), de dezem-
bro de 2000, na lei sobre o compro-
misso nacional com o meio ambien-
te, conhecida como Grenelle 2, de
julho de 2010, naquela que se refere
ao acesso à habitação e a um urbanis-
mo renovado (Alur), de março de
2014... A necessidade de “adensar” a
área periurbana, e em particular os
subúrbios das grandes cidades, está
no cardápio de qualquer simpósio de
planejamento urbano que se preze.
Portanto, é surpreendente ouvir o
atual ministro da Habitação, Julien
Denormandie, alegrar-se com o de-
sejo de um êxodo dos moradores das
cidades. “O período que acabamos
de viver nos faz questionar o ordena-
mento do território, e o que constata-
mos é um apetite muito forte por ter-
ritórios que, em termos imobiliários,
não seriam tão atraentes sem a cri-
se”, declarou em 14 de maio.^9 “O ho-
me office tem muito a ver com isso.
Hoje percebemos que novos modelos
sociais são possíveis.” O “modelo so-
cial”, que veria os trabalhadores de
colarinho branco deixando as me-
trópoles em grande escala para tra-
balhar em suas casas em Perche ou
Vexin, produziria, no entanto, uma
expansão urbana considerável, que,
ainda por cima, teria como resultado
uma maior dependência de carros e
gigantes da internet, do Zoom à
Amazon. Seria mesmo um “retorno à
natureza”?
*Benoît Bréville é jornalista do Le Monde
Diplomatique.
1 “População presente no território antes e de-
pois do início do confinamento: resultados
consolidados”, Instituto Nacional de Estatísti-
ca e Estudos Econômicos (Insee), 18 maio
- Disponível em: http://www.insee.fr.
2 Kevin Quealy, “The richest neighborhoods
emptied out most as coronavirus hit New York
City” [Bairros ricos foram esvaziados enquan-
to coronavírus atingia Nova York], The New
York Times, 15 maio 2020.
3 Ben Hall e Daniel Thomas, “Everyday is like
Sunday in a desert City of London” [Todo dia
é como domingo na deserta Londres], Finan-
cial Times, Londres, 27 mar. 2020.
4 Olivier Babeau, “Le coronavirus prépare-t-il la
revanche des campagnes?” [O coronavírus
prepara a vingança do campo?], FigaroVox,
24 mar. 2020. Disponível em: http://www.lefigaro.fr.
5 Cf. Salomé Berlioux, Nos campagnes suspen-
dues. La France périphérique face à la crise
[Nosso campo suspenso. A França periférica
diante da crise], Éditions de l’Observatoire,
Paris, 2020.
6 Greta Tommasi, “La gentrification rurale, un
regard critique sur les évolutions des campag-
nes françaises” [A gentrificação rural, um
olhar crítico sobre os desenvolvimentos do
campo francês], GéoConfluences, 27 abr. - Disponível em: http://geoconfluences.
ens-lyon.fr.
7 De 2.500 euros a 10.500 euros por metro
quadrado entre 1995 e 2020.
8 A população francesa cresceu duas vezes
mais rápido entre 1946 e 1961 do que entre
1870 e 1946.
9 “Julien Denormandie: ‘Eu quero revitalizar as
cidades médias!”, “L’Immo en clair”, SeLoger
- Radio Immo – Le Parisien, 14 maio 2020.
Todos precisam conci-
liar seus anseios com o
mercado de trabalho, a
disponibilidade de servi-
ços, a proximidade com
a família e amigos
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