Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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14 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


N


o dia 2 de dezembro de 2016, no
Centro Internacional de Deau-
ville, Emmanuel Macron apre-
sentava em inglês seu progra-
ma para a igualdade entre mulheres e
homens. “Permitir que as mulheres
tenham acesso à liderança nos negó-
cios ou na política é absolutamente
essencial.” Na plateia, uma maioria
composta por mulheres de negócios e
da vida política. Em onze anos de
existência, era a primeira vez que o
Women’s Forum for the Economy and
Society (WF, Fórum de Mulheres pa-
ra a Economia e a Sociedade) tinha
como convidado um candidato à pre-
sidência da França. Menos de três se-
manas depois, duas de suas dirigen-
tes assinaram o manifesto “Elles
Marchent” [Mulheres em marcha],
apoiando a candidatura do ex-minis-
tro da Economia.
Apelidado pela imprensa de “Da-
vos das Mulheres”, o WF conquistou
inf luência considerável desde sua
primeira edição, em 2005. Todo ano,
o evento reúne uma miríade de orga-
nizações e redes dedicadas à questão
do acesso das mulheres a cargos de
liderança na economia, seja no âmbi-
to empresarial ou no poder público.
Esse “feminismo de mercado”, para
usar a expressão da socióloga Sophie
Pochic,^1 apareceu na França no início
dos anos 2000. Surgido do outro lado
do Atlântico na década de 1980, ele
foi importado para o país europeu
pelas filiais francesas de multinacio-
nais norte-americanas. “Nos Estados
Unidos, essa aliança é natural”, expli-
ca Françoise Picq, historiadora, so-
cióloga do feminismo e ex-militante
do Movimento de Libertação das Mu-
lheres (MLF). “O sistema é capitalis-
ta, busca-se dinheiro onde há. As
ações são realizadas por meio de ar-
recadação de fundos ou por grandes
fundações.” Em 2007, a França conta-

Esse modelo econômico inspirou
outras organizações, que tecem a teia
de um feminismo empresarial cada
vez mais estruturado. A Journée de la
Femme Digitale (JFD, Jornada Femi-
nina Digital), que participa regular-
mente das conferências organizadas
pelo WF, promove start-ups digitais.
São “novas heroínas”, nas palavras de
sua cofundadora Delphine Remy-
-Boutang, que conta com o apoio fi-
nanceiro de várias empresas do CAC
40, como a Total, a Orange e a L’Oréal,
além de empresas norte-americanas,
como a Google e a Microsoft. “Não
somos uma associação, mas um ne-
gócio lucrativo”, preocupa-se tam-
bém ela em esclarecer.
Na defesa do acesso das mulheres
a cargos de liderança, o argumento
central é o de que a igualdade garan-
tiria às empresas benefícios econômi-
cos, contribuindo de forma mais geral
para o crescimento. Segundo Boris
Janicek, ex-executivo da L’Oréal e co-
presidente do Club X XIe Siècle, que
promove a diversidade no mundo
corporativo, esta tem um “valor eco-
nômico real”. Ele elogia, por exemplo,
a decisão do banco Goldman Sachs
de, a partir de julho de 2020, não
acompanhar mais na Bolsa empresas
que não tenham em seu conselho de
administração pelo menos uma mu-
lher e/ou uma pessoa “da diversida-
de”. “Não se trata de altruísmo ou de
responsabilidade social corporativa”,
garante. “A questão das mulheres está
intimamente ligada à questão dos va-
lores produtivos. Em empresas cujas
dirigentes são mulheres ou pessoas
de origens diversas, houve uma valo-
rização de 44% em quatro anos, con-
tra 13% nas demais.”
Grandes empresas de consulto-
rias, como a EY e a McKinsey, abra-
çam essa tese, defendendo a ideia de
que “a igualdade seria boa para o
mercado e que o mercado seria bom
para a igualdade”, explica Sophie Po-
chic. A McKinsey tenta demonstrar is-
so anualmente, com seu estudo “Wo-
men Matter” [As mulheres importam],
publicado em parceria com o WF. São
recomendados métodos padroniza-
dos em escala global, tanto em ins-
tâncias privadas como públicas: mo-
nitoring (acompanhamento de
indicadores quantificados), networ-
king (constituição de redes de mulhe-
res em posições executivas), mento-
ring (acompanhamento individual)
etc. “Essa retórica promove medidas
individualizadas e seletivas para uma
minoria de funcionárias ou de em-
presárias ‘com potencial’, ‘de talento’
ou ‘de excelência’, que são tratadas se-
paradamente da massa de trabalha-
doras comuns”, relata Sophie Pochic.
Com a Lei Copé-Zimmermann, a
atenção dada pelo poder público aos
círculos de mulheres líderes só au-

va com apenas cerca de uma centena
dessas redes que defendem o acesso
das mulheres aos cargos mais eleva-
dos,^2 ao passo que hoje há mais de
quinhentas delas no país, de acordo
com o Cercle InterElles.^3 Esse clube,
fundado em 2001 por executivas das
companhias France Telecom, IBM
France, Schlumberger e GE Health-
care, “possibilitou um intercâmbio
de boas práticas: ele oferece um es-
paço de compartilhamento para que
as mulheres possam acessar posições
de liderança, ao mesmo tempo que
dão visibilidade às multinacionais”,
explica Pochic.

MONITORING, NETWORKING
E MENTORING
O primeiro feito desse discreto lobby
foi a aprovação, em 2011, da Lei Co-
pé-Zimmermann. A nova legislação
francesa obriga as empresas priva-
das e públicas que tenham mais de
quinhentos funcionários permanen-
tes e um volume de negócios de pelo
menos 50 milhões de euros a ter, en-
tre seus altos executivos, um míni-
mo de 40% de homens (em conselhos
majoritariamente femininos) ou de
mulheres (em conselhos majorita-
riamente masculinos). Essa obriga-
ção não abrange comitês executivos
e de diretoria: essas instâncias, que
são as que detêm o real poder de de-
cisão, contavam em 2019 com apenas
17,9% de mulheres.^4 Aliás, a Engie é
atualmente a única empresa do CAC
40, o índice que reúne as quarenta
maiores empresas cotadas na Bolsa
de Paris, chefiada por uma mulher:
Catherine MacGregor, que assumirá
suas funções no início de 2021, suce-
dendo a Isabelle Kocher. Mas a Fran-
ça continua sendo um dos poucos
territórios – junto com a Noruega
desde 2003, a Itália desde 2011 e a Ca-
lifórnia desde 2018 – a adotar cotas

desse tipo. Assim, o país apresenta a
maior taxa de feminização nos con-
selhos de administração das grandes
empresas, que passou de 8,5% em
2007 para 43,6% em 2019.^5
O feminismo conduzido pelas eli-
tes não é novo: das sufragistas, que
em 1903 já lutavam pelo direito ao vo-
to feminino, à ex-ministra Simone
Veil, passando pela jornalista e escri-
tora Hubertine Auclert, ele fez parte
de avanços importantes em termos
de igualdade. “Na história do feminis-
mo, sempre houve mulheres de classe
alta”, observa Françoise Picq. Desde
sempre, correntes diversas se opuse-
ram, e até se enfrentaram. “Já no sé-
culo XIX, mulheres foram criticadas
por serem burguesas interessadas em
usufruir dos privilégios de sua classe.
Algumas desejavam ser independen-
tes do movimento social. Não que-
riam se aliar às franjas feministas dos
sindicatos, que defendiam uma alian-
ça com o socialismo. Mas, nessa épo-
ca, tratava-se de intelectuais, mulhe-
res à margem, que escreviam ou se
posicionavam contra a escravidão.”
Para evitar qualquer confusão
com organizações feministas ou
sindicais “radicais”, Aude de Thuin
define o WF, da qual é fundadora,
como um “empreendimento econô-
mico, assim como Davos” (ler boxe).
Se em seus primórdios o encontro
anual recorreu ao patrocínio de
multinacionais (Engie, McKinsey,
Sodexo e Renault, cujo ex-presidente
Carlos Ghosn foi um dos primeiros
apoiadores do fórum), em 2019 a
empresa organizadora do WF, a We-
fcos, registrou um volume de negó-
cios de 6,6 milhões de euros. Cabe
lembrar que o preço do ingresso é
particularmente elevado: 3 mil a 4
mil euros por dois ou três dias de
conferências, multiplicados por mil
a 2 mil participantes.

TODAS IGUAIS, MAS UMAS MAIS IGUAIS QUE AS OUTRAS


As redes “feministas” das


maiores empresas cotadas


na Bolsa de Paris


Tão discreta quanto eficaz, a atuação de redes patronais permitiu a adoção em 2011 de
uma lei que impõe a quase paridade entre os gêneros nos conselhos de administração
das grandes corporações francesas. No entanto, a influência das mulheres de negócios
sobre o governo afasta as associações feministas, enquanto seu ativismo permite a
multinacionais pouco preocupadas com os direitos trabalhistas dourar sua imagem

POR MAÏLYS KHIDER E TIMOTHÉE DE RAUGLAUDRE*

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