Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

4 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


moso apresentador da MSNBC, o
publicitário Donny Deutsch compa-
rou os apoiadores de Trump a multi-
dões fanáticas que compareciam aos
comícios nazistas: “Quero dizer aos
meus amigos judeus que vão votar
em Donald Trump: como se atrevem
a fazer isso? Não há nenhuma dife-
rença entre o que ele prega e o que
Adolf Hitler pregava”. Dois dias de-
pois, um comentarista do Washing-
ton Post estimou que devemos deixar
de temer a analogia entre o início da
ditadura nazista e as tentações totali-
tárias do presidente dos Estados Uni-
dos: “América, estamos à beira do
nosso incêndio do Reichstag. Pode-
mos evitá-lo. Não deixemos nossa de-
mocracia ser incinerada”.^2


PARANOIA ALIMENTADA PELA MÍDIA
Por fim, na CNN, enquanto a eleição
de Biden não tinha sido confirmada,
a famosa jornalista Christiane
Amanpour, em vez de saborear sua
vitória e se permitir uma pequena
pausa ativista, aproveitou a data de
12 de novembro para sinalizar que
aquela era a semana do aniversário
da Noite dos Cristais, durante a qual,
em 1938, as vitrines das lojas perten-
centes a judeus foram saqueadas e
muitos de seus proprietários foram
assassinados ou enviados para cam-
pos de concentração. O prelúdio, se-
gundo ela, de um assalto contra “a
realidade, o conhecimento, a história
e a verdade”, o que imediatamente a
traz de volta às transgressões do pre-
sidente norte-americano. Nos Esta-
dos Unidos e na Europa, a imprensa
progressista optou por não destacar
tais excessos, mas os apoiadores de
Trump não vão esquecê-los a cada
vez que rirmos de sua paranoia. Eles
já notaram que a eleição presidencial
havia ocorrido sem que se manifes-
tasse essa vasta conspiração russa da
qual foram continuamente informa-
dos por quatro anos.
A eleição de Obama desencadeara
um mecanismo de ódio e falsifica-
ção. Apesar de seu centrismo quase
conservador, sua austeridade fiscal,
sua leniência com os bancos, seus as-
sassinatos por drones, suas expul-
sões em massa de imigrantes, seus
protestos impotentes diante de abu-
sos policiais, os republicanos o acu-
saram de ser um radical ferrenho, um
revolucionário mascarado, um falso
norte-americano. Biden pode ficar
tão distante da esquerda quanto seu
predecessor democrata – “Eu sou o
cara que fez campanha contra os so-
cialistas. Eu sou o moderado”, ele de-
fendia em Miami uma semana antes
da votação –, mas seu mandato ocor-
rerá em um clima igualmente agita-
do, porque, como analisou o jornalis-
ta Matt Taibbi, a grande mídia não
está mais preocupada em informar,


consideração de identidade que se
atribui a eles. No caso em questão, os
do Rio Grande temeram que a hostili-
dade de Biden à indústria do petróleo
lhes negasse acesso a empregos bem
remunerados, mas que não exigem
diploma universitário. A mudança
climática, portanto, pareceu menos
temível para eles que a degradação
social. Outros moradores da região,
que ganham a vida decentemente co-
mo policiais ou guardas de fronteira,
acreditaram que os democratas para-
riam de financiar sua profissão. Por
fim, o fato de uma pessoa ser hispâni-
ca não impede que ela seja hostil ao
aborto ou a tumultos urbanos.
Em suma, você pode falar espa-
nhol e ser conservador, da mesma
forma que pode ser afro-americano e
não querer receber mais imigrantes
mexicanos, ou vir de um país asiático
preocupando-se com os programas
que procuram promover o acesso de
minorias à universidade. Enquanto
os democratas inventam questões
progressistas artificiais, os republi-
canos ganham o mel em divisões
bem reais, correndo o risco, tanto
uns quanto outros, de não ver o outro
lado da realidade: se os jovens hispâ-
nicos votam mais nos democratas
que seus pais, isso não significa ne-
cessariamente que tenham mais
consciência que eles de sua “identi-
dade”. Acima de tudo, eles são mais
graduados que a geração que os pre-
cedeu. Também nesse campo da di-
versidade, as certezas oscilam.
A crise de confiança dos Estados
Unidos em seu sistema político po-
derá talvez ter a vantagem de dissua-
di-los de impô-lo à força ao mundo
inteiro. Quanto à esquerda norte-a-
mericana, que não sai fortalecida
dessa eleição – ainda que seu resulta-
do a tranquilize –, só resta alertar o
novo presidente contra uma política
excessivamente cautelosa, seme-
lhante à dos democratas que permi-
tiram a eleição de Trump.

*Serge Halimi é diretor do Le Monde
Diplomatique.

1 Pesquisa do Monmouth University Polling Ins-
titute, 18 nov. 2020.
2 Dana Milbank, “This is not a drill. The Reichs-
tag is burning” [Isto não é um teste. O Reichs-
tag está pegando fogo], The Washington
Post, 25 set. 2020.
3 Matt Taibbi, Hate Inc.: Why Today’s Media
Make Us Despise One Another [Ódio S.A.:
por que a mídia atual nos faz desprezar uns
aos outros], OR Books, Nova York, 2019.
4 Estudo do Pew Research Center, out.-nov.


  1. As proporções para a NPR (a televisão
    pública), a CNN e a MSNBC também são de-
    sequilibradas a favor dos democratas; para a
    ABC, a CBS e a NBC o são menos.
    5 Kevin Phillips, The Emerging Republican Majo-
    rity [A maioria republicana emergente], Arling-
    ton House, Nova York, 1969.
    6 Elizabeth Findell, “Latinos on border shifted to
    GOP” [Latinos na fronteira passam para o
    Partido Republicano], Wall Street Journal, 9.


mas em satisfazer apoiadores endu-
recidos suficientemente numerosos
para fazê-los viver ou morrer.^3 Entre
aqueles que se informam lendo o New
York Times, 91% se declaram demo-
cratas e, entre aqueles que preferem a
Fox News, 93% se proclamam repu-
blicanos.^4 O bom business model pas-
sa então a empanturrar o animal, isto
é, o assinante, com a comida que ele
espera, mesmo que seja tendenciosa,
ultrajante e falsificada. E os jornalis-
tas, inclusive quando proclamam seu
amor pela diversidade, têm o cuidado
de caçar hereges.
O resultado é convincente: trans-
formado em um anexo ideológico do
Partido Democrata e capaz de publi-
car meia dúzia de editoriais ou co-
mentários que a cada dia reafirmam
seu desprezo e seu ódio pelo presi-
dente que deixa o cargo, o New York
Times tem 7 milhões de assinantes.
De sua parte, a Fox nunca ganhou
tanto dinheiro.
A existência de dois países que se
ignoram ou se enfrentam não é novi-
dade nos Estados Unidos. E, na época
da Guerra Civil, a fratura já ignorava as
categorias econômicas e sociais. Mais
recentemente, em 1969, um conselhei-
ro do presidente Richard Nixon, Kevin
Phillips, recomendou ao Partido Re-
publicano, com mapas e gráficos para
apoiá-lo, que aproveitasse a “revolta
populista das massas norte-america-
nas que, tendo alcançado a prosperi-
dade das classes médias, se tornaram
mais conservadoras. Elas se levantam
contra a casta, as políticas e a tributa-
ção dos mandarins de esquerda do es-
tablishment”.^5 A essa análise, que as-
sociava a hostilidade aos impostos
daqueles cujo pecúlio estava crescen-
do e sua animosidade contra uma en-
genharia social cujo erro eles atri-
buíam a intelectuais progressistas,
que desrespeitavam na opinião deles
os preceitos religiosos, Phillips acres-
centou o toque do ressentimento ra-
cial. Em suma, os “pequenos brancos”
do sul, tradicionalmente democratas,
estavam fartos da emancipação dos
negros. E havia nisso, segundo ele,
uma alavanca que os republicanos po-
deriam acionar para conquistar um
eleitorado popular. Ele era hostil a
priori às políticas econômicas de di-
reita, mas “animosidades étnicas e
culturais têm precedência sobre qual-
quer outra consideração quando se
trata de explicar a escolha do partido”.
Em larga medida, a estratégia política
de Phillips explica as reeleições de Ri-
chard Nixon, Ronald Reagan e George
W. Bush. Ela também lançou luz sobre
a presidência de Trump.
No entanto, um discurso que tem
por alvo os especialistas, a merito-
cracia, os migrantes e as minorias se
torna eleitoralmente perigoso em um
país em que a proporção de estudan-

tes está aumentando e a de brancos
diminuindo. Os democratas podiam,
portanto, apostar que o tempo estava
do seu lado. Somando-se a isso a qua-
se totalidade dos votos negros, uma
grande maioria de eleitores hispâni-
cos, uma pequena vantagem entre as
mulheres e progressos constantes
entre os que têm curso superior, a vi-
tória não poderia escapar deles.
A eleição de 2020 teve pelo menos
o mérito de questionar esse catecis-
mo de identidade, essa atribuição de
toda uma população a quadros de-
mográficos, distintos, étnicos e polí-
ticos ao mesmo tempo. Uma compa-
ração dos resultados indica que foi
principalmente junto ao eleitorado
branco que Biden progrediu em rela-
ção à pontuação de Hillary Clinton
há quatro anos e que a maior parte
dos que acabaram por votar em
Trump foi composta de votos adicio-
nados de mulheres e minorias. Em
proporção, estamos longe do terre-
moto de uma eleição para a outra: al-
guns pontos aqui, alguns pontos ali.
Os republicanos sempre triunfam
entre os homens brancos, sobretudo
quando eles não têm diploma, en-
quanto os democratas triunfam en-
tre negros e hispânicos.

O VOTO DOS HISPÂNICOS
No entanto, a evolução ocorreu onde
não era esperada. O fato de Trump ter
melhorado sua pontuação com os
afro-americanos depois de ter mos-
trado sua indiferença à brutalidade
policial e sua hostilidade ao movi-
mento Black Lives Matter [Vidas Ne-
gras Importam] e de ter feito um
grande avanço no eleitorado hispâni-
co depois de ter promovido (e em par-
te construído) um muro na fronteira
mexicana e ter tratado migrantes co-
mo estupradores e assassinos parece
ir além da compreensão. Tanto que
alguns republicanos imaginam que
seu partido pode se tornar conserva-
dor, popular e multiétnico. Por sua
vez, os democratas estão preocupa-
dos em ver escapar deles uma parte
da clientela que consideravam con-
quistada, para não dizer cativa.
É no entorno do Rio Grande, no
Texas, que o enigma é parcialmente
desvendado.^6 Ali, mais de 90% da po-
pulação é hispânica. Quatro anos
atrás, Clinton obteve 65% dos votos
no condado de Zapata. Dessa vez, foi
Trump quem venceu. Que aconteceu?
Os hispânicos, como outros, simples-
mente não são movidos apenas pela

A existência de dois paí-
ses que se ignoram ou se
enfrentam não é novida-
de nos Estados Unidos

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