Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31


acusação de apologia ao terrorismo
contra pessoas estúpidas o suficiente
para terem mostrado seu apoio a este
ou aquele crime?
Embora não tenhamos o mesmo
nível de distanciamento, a ineficiên-
cia tendencial da arbitrariedade dos
poderes públicos também é ilustrada
na implementação do estado de emer-
gência sanitária instituído pela Lei n.
2020-290, de 23 de março de 2020. Va-
mos esclarecer desde o início que não
era absolutamente necessário insti-
tuir um novo regime de exceção para
fazer frente à crise sanitária: a “urgên-
cia” era muito mais dar às medidas de
restrição à liberdade adotadas pelo
governo uma base legal mais sólida e
protetora que a simples invocação de
“circunstâncias excepcionais”. Embo-
ra essa lei tenha permitido um melhor
enquadramento da intervenção das
autoridades, ela está longe de prevenir
qualquer risco de arbitrariedade. Esse
risco decorre, em primeiro lugar, dos
critérios que permitem o desencadea-
mento de um estado de emergência
sanitária, que pode ser decidido para
pôr fim a uma “catástrofe sanitária
que coloca em perigo, por sua nature-
za e gravidade, a saúde da popula-
ç ã o”.^15 No entanto, a noção de “catás-
trofe” é muito vaga e, acima de tudo,
muito subjetiva. Da mesma forma, a
noção de “perigo” é muito ampla: por
hipótese, qualquer doença infecciosa
afeta nossa saúde, quando apenas
eventos de natureza que ameaçam a
vida ou, pelo menos, que afetam irre-
paravelmente a integridade física de
parte significativa da população de-
veriam ser capazes de justificar a ado-
ção de medidas tão restritivas das li-
berdades quanto aquelas permitidas
pelo estado de emergência sanitária.
A imprecisão dos critérios de mudan-
ça na exceção é ainda mais problemá-
tica quando se pensa que o Parlamen-
to só é convidado a votar sobre a
prorrogação do estado de emergência
de saúde após um mês e que se, por


um lado, as restrições que podem ser
ordenadas pelo primeiro-ministro
são definidas de forma exaustiva, por
outro apenas a quarentena ou a colo-
cação em isolamento estão sujeitas à
revisão judicial sistemática de sua ne-
cessidade e proporcionalidade.^16 No
entanto, tal como deliberou o Conse-
lho Constitucional, esse requisito
também se aplica à prisão domiciliar
particularmente mais rigorosa que
aquela à qual todos nós estamos no-
vamente sujeitos.^17
Aqui, de novo, notamos que essa
coerção desproporcional provavel-
mente reduzirá a eficácia bem com-
preendida da resposta do público.
Assim, o excesso pode levar a uma
menor adesão às medidas de restri-
ção e, em consequência, a uma me

nor observação das ações profiláti-
cas pelos cidadãos. Reconhecendo
indiretamente esse risco, o governo,
desde os primeiros dias do confina-
mento da primavera, mobilizou mais
de 4,3 milhões de controles policiais
para garantir seu cumprimento.^18 O
custo desse dispositivo poderia, sem
dúvida, ter sido alocado de forma
muito mais útil para a proteção de
pessoas particularmente vulnerá-
veis à doença...
Garantir que as violações das li-
berdades sejam estritamente adap-
tadas e proporcionais não constitui
apenas uma necessidade democráti-
ca. É também condição sine qua non
para a eficácia da luta contra o peri-
go em nome do qual queremos res-
tringi-las.

Exército Francês patrulha a região da Torre Eiffel, em Paris

© Philippe Wojazer/Reuters
*Vincent Sizaire é professor associado
da Universidade Paris Nanterre e autor de
Être en sûreté. Comprendre ses droits pour
être mieux protégé [Estar em segurança.
Entender seus direitos para estar mais bem
protegido], La Dispute, Paris, 2020.

1 Cf., por exemplo, “Terrorisme, liberté d’expres-
sion, laïcité... Au-delà des polémiques et de
l’instrumentalisation politicienne, les principes
et le droit” [Terrorismo, liberdade de expres-
são, secularismo... Para além das controvér-
sias e da instrumentalização política, os prin-
cípios e a lei], Sindicato dos Advogados da
França, Paris, 30 out. 2020.
2 Ler “Des sans culottes aux ‘gilets jaunes’, his-
toire d’une surenchère répressive” [Dos sans-
-culottes aos “coletes amarelos”, a história de
uma escalada repressiva], Le Monde Diplo-
matique, abr. 2019.
3 Michel Lepeletier de Saint Fargeau, relatório
sobre o projeto de Código Penal, Assem-
bleia Constituinte, sessões de 22 e 23 de
maio de 1791.
4 Art. L.421-2-1 do Código Penal.
5 Lei de 30 de outubro de 2017, que reforça a
segurança interna e a luta contra o terrorismo.
6 Art. 11 da Lei n. 55-385, de 3 de abril de
1955.
7 Art. L. 228-1 do Código de Segurança Interna.
8 Ler “Quand parler de ‘terrorisme’? ” [Quando
falar sobre “terrorismo”?], Le Monde Diplo-
matique, ago. 2016.
9 Cf. Sortir de l’imposture sécuritaire [Sair da
impostura de segurança], La Dispute, Paris,
2016.
10 Trinta procedimentos abertos sob essa acu-
sação para “mais de 4.300” medidas de bus-
ca, de acordo com o estudo de impacto do
projeto de lei que reforça a segurança interna
e o combate ao terrorismo de 22 de junho de


  1. Além disso, nenhuma infração foi cons-
    tatada em quase 88% dos casos.
    11 Relatório de informação n. 348 sobre o con-
    trole e fiscalização da Lei n. 2017-1510, de
    30 de outubro de 2017, Senado, Paris, 26
    fev. 2020.
    12 Art. 706-89 e seguintes do Código de Pro-
    cesso Penal.
    13 Laurent Borredon, “État d’urgence: ‘Ne cas-
    sez pas la porte, sonnez, je vous ouvre’” [Esta-
    do de emergência: “Não arrombe a porta, to-
    que a campainha, vou abrir para você”], Le
    Monde, 14 dez. 2015.
    14 Art. L.851-1 e seguintes do Código de Segu-
    rança Interna.
    15 Art. L.3131-12 do Código de Saúde Pública.
    16 Artigos L. 3131-15 e L. 3131-17 do Código de
    Saúde Pública.
    17 Decisão n. 2020-800 DC, de 11 de maio de
    2020, cons. 43, Conselho Constitucional,
    Paris.
    18 Relatório da missão de acompanhamento do
    projeto de lei de emergência para lidar com a
    epidemia de Covid-19, Senado, 2 abr. 2020.


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