6 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020
ra nos enganar. Da mesma forma,
Bill Clinton, o mais sentimental dos
presidentes recentes, parecia capaz
de abrir e fechar a torneira à vonta-
de. A tática do choro era apenas uma
entre outras ferramentas em sua cai-
xa de truques.
Em suma, os líderes políticos de
todos os matizes estão soluçando
porque isso funciona. As lágrimas le-
vam à adesão. Elas definem uma po-
sição de vítima, injustamente perse-
guida pelos poderosos. Elas provam a
sinceridade, sugerem uma nobreza
interior. Hillary Clinton, conhecida
por seu temperamento de aço, rara-
mente cede na frente das câmeras de
televisão. No entanto, esse foi o caso
em 2008, quando uma mulher per-
guntou a ela, após um longo dia de
campanha: “Como você faz? Como
faz para se manter tão positiva e tão
maravilhosa?”. Seus ex-apoiadores
consideram esse um de seus momen-
tos mais bonitos.^1
Embora o autoritário Trump difi-
cilmente seja do tipo que chora em
público, ele fica de mau humor e re-
clama profusamente. Ele se apresen-
ta como o “resmungão mais fabulo-
so” do país: “Eu choramingo e
choramingo sem parar até ganhar”,
confessou uma vez à CNN (11 ago.
2015). E “ele choraminga e chora-
minga” também quando perde. Seus
lamentos são muitas vezes incom-
preensíveis, intermináveis e dignos
de pena. Até tarde da noite, ele tuíta
sobre a implacabilidade da mídia em
relação a ele, sobre os bandidos que
roubam sua reeleição, sobre sua pró-
pria administração, que não reco-
nhece a legitimidade de suas queixas
etc. Como um empresário que abriu
caminho com a força de muitas
queixas, ele encarna perfeitamente o
movimento conservador, que encon-
trou uma maneira de vender a dou-
trina da sobrevivência do mais apto
- transformada em sua marca regis-
trada – ao reclamar contra esses hor-
ríveis democratas que tentam estra-
gar o Natal e contra a televisão que
zomba dos valores dos humildes e
piedosos cidadãos.
UMA CORRIDA
DE ACUSAÇÕES MORAIS
Assim, as lágrimas estão no cerne da
política norte-americana e fornecem
os argumentos mais poderosos de
nosso vocabulário político. São o su-
ficiente para ganhar a primeira pági-
na de um grande jornal. Biden, um
grande sentimental, acaba de vencer
a eleição presidencial, apoiando-se
não em propostas ambiciosas, mas
na repulsa que lhe inspira um odiado
Donald Trump. Enquanto isso, os re-
publicanos não medem esforços,
com suas fúteis guerras culturais e
seus apelos nostálgicos, para “tornar
a América grande novamente”. Ne-
nhum dos dois principais partidos
pretende regulamentar Wall Street e
o Vale do Silício nem reindustrializar
a Pensilvânia e o Michigan. No geral,
a retórica política se transformou em
uma corrida de acusações morais, em
que homens carregando rif les de as-
salto afirmam ser as vítimas e em que
investigadores autoproclamados pa-
trulham a internet em busca de pis-
tas de privilégios e de adjetivos des-
respeitosos. Nossa vida política está
cada vez mais reduzida à vergonha e
às queixas pessoais. Choramos por-
que somos os mais nobres, choramos
porque somos os mais vis, choramos
porque somos excluídos, choramos
porque somos perseguidos, chora-
mos porque saímos vitoriosos, chora-
mos porque nunca conseguimos ob-
ter o que queremos.
O poeta polonês Tadeusz Róże-
wicz, que sobreviveu a muitas catás-
trofes na Europa, um dia qualificou a
América de “superpotência soluçan-
te”. Em um poema sardônico que leva
esse nome, ele descreve a posse do
presidente George W. Bush em 2001:
um grande momento de exibição
sentimental durante o qual os parti-
cipantes derramaram torrentes de lá-
grimas, antes de vestirem suas rou-
pas de gala e calçarem suas botas de
caubói para participar de um ban-
quete suntuoso.
Visto de fora, deve ser estranho
observar o país mais rico e mais po-
deroso do mundo escolher seu rumo
baseado numa lenga-lenga e em pos-
turas moralizantes, tudo enterrado
sob milhões de litros de lágrimas
com alta octanagem. Como deve ser
irritante saber que as escolhas dos
Estados Unidos terão graves conse-
quências em seu país e em sua vida,
mas que suas lágrimas não terão ne-
nhum efeito em nossas majestosas
deliberações.
*Thomas Frank é jornalista. Último livro
publicado: The People, No: A Brief History
of Anti-Populism [O povo, não: uma breve
história do antipopulismo], Metropolitan
Books, Nova York, 2020.
1 Cf. Michael Kruse, “The woman who made Hil-
lary cry” [A mulher que fez Hillary chorar], Po-
litico, 20 abr. 2015. Disponível em: http://www.poli-
tico.com.
Joe Biden promete promover uma restauração em
Washington, no que seria uma espécie de terceiro
mandato de Barack Obama. Porém, mesmo esse objetivo
pouco ambicioso parece distante. Os apoiadores de Trump
contestam apaixonadamente o resultado das eleições e
contam com um Partido Republicano cujo poder
permanece intacto
POR JEROME KARABEL*
A
pós vários dias de suspense, Joe
Biden finalmente venceu Do-
nald Trump nas eleições presi-
denciais norte-americanas,
mas a vitória tímida não representa o
repúdio definitivo que os democratas
tinham ardentemente desejado. Na
verdade, as eleições se revelaram até
desastrosas para eles. Apesar do pé
de meia impressionante coletado pa-
ra financiar sua campanha (US$ 1,
bilhão em apenas três meses, de ju-
lho a setembro),^1 eles não consegui-
ram reconquistar o Senado, perde-
ram cadeiras na Câmara dos
Representantes e não foram capazes
de ganhar a maioria das legislaturas
estaduais, que detêm um poder con-
siderável no sistema federal
norte-americano.
A verdade perturbadora é que,
sem a pandemia de Covid-19 e a ca-
tástrofe econômica que se seguiu – a
taxa de desemprego atingiu o pico de
14,7% em abril, nível nunca alcança-
do desde os anos 1930 –, Trump teria
boas condições de ser reeleito. Ex-
posto por quatro anos às inúmeras
mentiras do presidente, a suas trapa-
lhadas durante a crise sanitária, a
suas múltiplas provocações, o povo
respondeu dando-lhe pelo menos
73,7 milhões de votos,^2 mais que
qualquer candidato republicano na
história, e até 10 milhões a mais que
sua própria pontuação em 2016.
Em fevereiro de 2020, a economia
estava indo bem. A taxa de desempre-
go atingiu seu nível mais baixo
(3,5%), a inf lação não ultrapassava os
2,3% e, no último trimestre de 2019, o
crescimento tinha progredido a um
ritmo vigoroso de 2,4%. Esse dina-
mismo, associado à ausência de guer-
ras de grande envergadura – em um
momento em que o isolacionismo do-
mina a opinião pública – e à vanta-
gem que tem todo candidato que está
exercendo o cargo, levou muitos cien-
tistas políticos e economistas a pre-
ver uma vitória de Trump.^3 E, se a de-
terioração da situação sanitária e
econômica finalmente comprometeu
suas chances, o cenário político nor-
te-americano ainda assim não está
livre do trumpismo.
O personagem retém o apoio de
dezenas de milhões de partidários
fervorosos e devotados, mas também
de muitas organizações conservado-
ras, como o Club for Growth (Clube
para o Crescimento, hostil à tributa-
ção e à redistribuição) e o Family Re-
search Council (Conselho de Pesqui-
sa da Família, um grupo de cristãos
evangélicos que se opõe ao aborto, ao
divórcio, aos direitos dos homosse-
xuais...), e de vários meios de comu-
nicação, como Fox News ou Breitbart
News. Além disso, os ingredientes
que tornaram Trump bem-sucedido
em 2016 ainda estão lá: hostilidade
aos imigrantes, em um país que está
passando por sua transformação de-
mográfica mais profunda em um sé-
culo, animosidade racial, condescen-
dência da elite educada em relação às
classes populares e o sentimento hoje
difundido de que a globalização tem
servido aos interesses das multina-
cionais e das classes altas em detri-
mento da maioria.
O trumpismo é parte de uma re-
volta “populista” global contra as eli-
tes políticas, econômicas e culturais,
sobretudo entre aqueles cuja vida foi
virada de cabeça para baixo pela glo-
balização e pela desindustrialização.
Como observa John Judis, o “populis-
mo de direita” tende a prosperar
quando os partidos majoritários igno-
ram ou minimizam os problemas
reais.^4 Os democratas, portanto, car-
regam uma responsabilidade esma-
Um trumpismo sem
Donald Trump
.