Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7


© Darren Halstead/Unsplash
gadora pelo nascimento do trumpis-
mo e por sua consolidação. O apoio de
Bill Clinton ao Acordo de Livre Co-
mércio da América do Norte (Nafta),
que entrou em vigor em 1º de janeiro
de 1994, e a pressão exercida pelo ex-
-presidente para facilitar a adesão da
China à Organização Mundial do Co-
mércio (OMC) representaram um du-
ro golpe no mercado de trabalho local.
Segundo uma estimativa do Instituto
de Política Econômica, a entrada de
Pequim na OMC teria custado à in-
dústria manufatureira dos Estados
Unidos 2,4 milhões de empregos.^5
Barack Obama pouco fez para
mostrar que o Partido Democrata es-
tava preocupado com o destino das
classes populares: ele indicou como
secretário do Tesouro alguém próxi-
mo a Wall Street (Timothy Geithner),
não quis processar os banqueiros
responsáveis pela crise de 2008 e não
soube como proteger os milhões de
norte-americanos que perderam
suas casas e aposentadorias. Quatro
anos atrás, os democratas pagaram
um preço alto por seu frenesi de li-
vre-comércio. De acordo com um es-
tudo de David Autor,^6 economista do
Massachusetts Institute of Technolo-
gy (MIT), as perdas de empregos liga-
das ao desenvolvimento do comércio
chinês podem ter fornecido a Trump
os poucos pontos que garantiram seu
sucesso nos estados industriais do
Michigan, Wisconsin e Pensilvânia,
decisivos em sua vitória em 2016.
Historicamente visto como o
“partido dos trabalhadores”, o Parti-
do Democrata há muito experimenta
uma erosão do apoio das classes po-
pulares, sobretudo entre aqueles que
se declaram “brancos”. Essa tendên-
cia foi confirmada em 2020. De acor-
do com as primeiras pesquisas de bo-
ca de urna,^7 Trump teria obtido os
votos de 64% dos eleitores brancos
não graduados (contra 34% de Bi-
den). Ele também seria considerado
muito popular entre os cristãos evan-
gélicos (81% dos votos) e os habitan-
tes de áreas rurais (65%). As circuns-
crições mais pobres do país, onde os
conservadores começaram a criar
raízes em 2000, são agora as mais
propensas a votar no Partido Repu-
blicano, enquanto 44 das 50 circuns-
crições mais ricas – e todas as dez
mais ricas – se mostram agora mais
favoráveis aos democratas. Essa in-
versão da relação entre classe social e
preferências políticas oferece um ter-
reno fértil para um ressurgimento do
trumpismo sem Trump. Na ausência
de uma mudança radical de curso
dos democratas, os mais pobres po-
deriam continuar a se voltar para os
republicanos, que têm uma lista de
bodes expiatórios para explicar seus
problemas: imigrantes, negros, es-
trangeiros, as “elites”...


Não nos enganemos: o Partido Re-
publicano se tornou um partido de
extrema direita, em muitos aspectos
tão virulento quanto os partidos au-
tocráticos que atualmente governam
a Hungria ou a Turquia. Tendo os ad-
versários sido colocados de escanteio


  • o senador do Arizona Jeff Flake
    (2013-2019), o representante da Caro-
    lina do Sul Mark Sanford (2013-2019)...
    –, ele está agora nas mãos dos trum-
    pistas e provavelmente ficará assim
    em um futuro próximo. O perigo co-
    locado pelo “populismo de direita” é
    ainda maior nos Estados Unidos que
    em muitos países europeus, onde o
    sistema de representação proporcio-
    nal muitas vezes relega – embora haja
    exceções – os partidos de extrema di-
    reita às margens do jogo político, co-
    mo na Holanda (onde o Partido para a
    Liberdade obteve apenas 13% dos vo-
    tos nas eleições parlamentares de



  1. e na Espanha (onde o Vox atin-
    giu o pico de 15% nas eleições gerais
    de 2019). Os partidários do presidente
    norte-americano controlam um dos
    dois principais partidos e, por sua
    vez, o sistema uninominal majoritá-
    rio continua sendo um obstáculo for-
    midável ao surgimento de outras le-
    gendas. O sistema está, portanto,
    instalado para o surgimento de um
    demagogo ainda mais perigoso que
    Trump. Imagine o carisma de um Ro-
    nald Reagan aliado à inteligência e à
    disciplina de um Barack Obama...
    Biden chega ao poder em um país
    polarizado, onde a Covid-19 exacer-
    bou as disparidades sociais. De acor-
    do com o Ministério do Trabalho, os
    Estados Unidos atravessam atual-
    mente a crise econômica mais desi-
    gual de sua história, com o desenvol-
    vimento do home office claramente
    favorecendo os mais qualificados. No
    auge da crise, a taxa de destruição de
    empregos de baixa remuneração era
    oito vezes maior que a de empregos


bem pagos. Empregados e autônomos
com diploma universitário tinham
proporcionalmente quatro vezes
mais chances de exercer sua ativida-
de em casa que os trabalhadores sem
diploma de ensino superior.^8 Enquan-
to isso, os mais ricos encheram seus
bolsos ainda mais. Entre 18 de março,
data de início dos confinamentos, e
20 de outubro, a fortuna dos 643 bilio-
nários do país aumentou em US$ 931
bilhões, quase um terço da riqueza
total deles. Biden tem uma dívida es-
pecial com os ultrarricos que, com
doações de US$ 100 mil ou mais, le-
vantaram US$ 200 milhões para sua
campanha em seis meses. Os princi-
pais centros de poder financeiro dos
Estados Unidos – Wall Street, Vale do
Silício, Holly wood, fundos de investi-
mento – reconhecem nele um presi-
dente que não corre o risco de amea-
çar seus interesses.
Com um Senado que provavel-
mente permanecerá presidido pelo
implacável senador do Kentucky Mit-
ch McConnell, Biden encontrará
grandes dificuldades para concreti-
zar qualquer medida de seu progra-
ma. Empurrado pela direita no Sena-
do, ele também estará sob pressão da
ala esquerda de seu partido, com Ber-
nie Sanders e Elizabeth Warren na li-
derança. Tal situação traria proble-
mas até mesmo para os líderes mais
determinados. Imaginem então para
“Joe adormecido”...^9 Sem falar que o
novo presidente também terá de se
distinguir das políticas de Obama, às
quais lealmente serviu como vice-
-presidente e que levaram ao surgi-
mento de Trump e de seu movimen-
to. Para isso, precisaria abandonar o
centrismo cauteloso que marcou to-
da a sua carreira, operando, como
seu partido, uma virada radical.
Que forma essa virada poderia as-
sumir? Uma estratégia popular con-
sistiria em defender um imposto so-

bre os lucros excessivos, visando
sobretudo àqueles que enriqueceram
durante a pandemia – na linha do sis-
tema tributário introduzido logo
após a Segunda Guerra Mundial. O
pacote de estímulo que o governo Bi-
den certamente tentará aprovar po-
deria ser direcionado não às grandes
corporações (como a de Obama em
2009), mas àqueles mais diretamente
afetados pela crise: os trabalhadores
de baixa renda, desempregados e do-
nos de pequenos negócios. Biden
também poderia oferecer um dispo-
sitivo verdadeiramente protetor para
os milhões de inquilinos e pequenos
proprietários ameaçados de despejo
em plena pandemia.
Obviamente, um Senado com
maioria republicana não aprovará
tais medidas. Mas, ao defendê-las
com tenacidade, os democratas ex-
pressariam alto e bom som seu com-
promisso renovado com as classes
populares, no espírito do New Deal
de Franklin Delano Roosevelt. Isso
permitiria que eles se colocassem,
durante as eleições de meio de man-
dato de 2022, como alternativa diante
da inação dos republicanos. Essa se-
ria a melhor forma de evitar o retorno
de um novo tipo de trumpismo, ain-
da mais tóxico que o original.

*Jerome Karabel é professor de Sociolo-
gia da Universidade da Califórnia em
Berkeley.

1 Rebecca R. Ruiz e Rachel Shorey, “Demo-
crats see a cash surge, with a $1.5 billion Ac-
tBlue haul” [Os democratas veem um aumen-
to de caixa, com um aporte de 1,5 bilhão de
dólares da ActBlue], The New York Times, 16
out. 2020.
2 Cifra de 20 de novembro de 2020.
3 Cf., por exemplo, Jeff Cox, “Trump is on his
way to an easy win in 2020, according to Moo-
dy’s accurate election model” [Trump está a
caminho de uma vitória fácil em 2020, de
acordo com o modelo eleitoral preciso da
Moody], CNBC, 15 out. 2019.
4 John B. Judis, The Populist Explosion: How
the Great Recession Transformed American
and European Politics [A explosão populista:
como a grande recessão transformou as polí-
ticas norte-americana e europeia], Columbia
Global Reports, Nova York, 2016.
5 Robert E. Scott, “US-China trade deficits cost
millions of jobs, with losses in every state and
in all but one congressional district” [Os défi-
cits comerciais EUA-China custam milhões de
empregos, com perdas em todos os estados e
em todos os distritos eleitorais, com exceção
de um], Economic Policy Institute, Washing-
ton, DC, 18 dez. 2014.
6 David Autor et al., “Importing political polariza-
tion? The electoral consequences of rising
trade exposure” [Importando polarização polí-
tica? As consequências eleitorais da crescen-
te exposição do comércio], American Econo-
mic Review, v.110, n.10, Nashville, out. 2020.
7 “National exit polls: How different groups vo-
ted” [Pesquisas de boca de urna nacionais:
como os diferentes grupos votaram], The New
York Times, nov. 2020. Disponível em: http://www.
nytimes.com.
8 Heather Long et al., “The covid-19 recession is
the most unequal in modern US History” [A
recessão provocada pela Covid-19 é a mais
desigual da história moderna dos Estados
Unidos], The Washington Post, 30 set. 2020.
9 “Joe adormecido”, um dos apelidos que Trump
deu a seu oponente democrata.

Homem usando máscara de Donald Trump em frente à Casa Branca

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