Cartas à restinga 53
choro de criança na própria casa. Música, essa coisa hoje tão banal que até geralmente
enfada, e até irrita, música só era possível realizada ali na hora por “técnicos”, — raridade
extrema lá, preciosidade! Assim, até o cantozinho ligeiro de um pássaro era saboreado:
era saboreado o flautim sutil do vento em qualquer frestazinha de porta fechada, ou ja-
nela ... E no fundo deste coração, tenho os gemidos vagamente musicais que hoje todos
acham insuportáveis, dos carros de bois, — os poucos carros que, não todos os dias,
rompiam na restinga, com lenha geralmente, e cuja cantiga, de tão pobres notas, a gente
começava a ouvir ainda muito longe, longe... Até os coros que desapareciam ao fim de
chuvas menos rápidas eram música...
E tudo nessa base. Luar! Que luar pode haver com luz pública?
O luar de então era um deslumbramento místico! Era infindo, absoluto. Aos fre-
qüentadores de agora (Renato por exemplo) esses encantos farão rir, pela tenuidade.
Acharão que era miséria. E, no entanto, os irmãos todos, não só eu, gostávamos muitís-
simo daquela
Grussaí simplíssima. Era um teor da vida bastante diferente da vida aqui na
cidade, diferença muito maior do que existe atualmente, e isso tinha um sabor especial,
aquela meia rusticidade. Era quase assim como que um outro mundo, aquele viver se-
mi-agreste em que, a não ser o chefe da família, que vinha a Campos amiúde, a gente
quedava lá por dois meses a fio, e geralmente sem nenhuma saudade de Campos – digo
de nós, as crianças.
Havia bem mais lugares para se passear a cavalo, porque muitas propriedades
não eram cercadas, a gente podia ir entrando para dar voltas, íamos catar frutinhas que
somente lá havia – almécegas, quixabas, bacoparis, ingás mirins, frutinhas a que os
adultos não davam apreço, e por isso não eram vendidas à porta pelos nativos, como
acontecia às melancias, cajus e ingás grandes.
Como a iluminação (doméstica) era a precaríssima do querosene, jantava-se
com o sol de fora, às 4 e meia, 5 horas, — o que tinha um encanto próprio. De retorno
do passeio pela restinga, tomávamos mate queimado com uma conversinha familiar já
meio sonolenta. E que sono delicioso, com algum grilinho sutil num canto do quarto, o
vento zunindo nas telhas e, ao longe, o imenso clamor do oceano...
Em falta de flores aristocráticas, da cidade, assumiam realce as mudas silves-
tres. A gente dava atenção e degustava coisinhas finas que teriam sido somenos num
local de atrativos numerosos e palpitantes. E assim era em todas as direções.
Há uma conclusão um tanto filosófica a extrair disso: a infância tem uma ap-
tidão extraordinária à felicidade. Encanta-se com pouco. Especialmente os ambientes
silvestres tocam profundamente com a índole infantil. A tal ponto que embora criados