CRÓNICA
P O R CAP I C U A I Rapper
Novela
Tanto me
apanham a ouvir
as dissertações de
Agostinho da Silva
como a ver tutoriais
de maquilhagem
no YouTube
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ão sou daquelas pessoas interessantes que têm sempre
coisas para dizer no Twitter. Muito menos daquelas
pessoas cultas que têm uma prodigiosa memq.ria para
nomes de livros, discos e filmes, autores, editoras e
realizadores. Daquelas que citam de cor. Daquelas que
sabem de música clássica. Que leram tudo e foram
a todas as exposições.
Eu sou das que trocam os nomes todos e por muito
que tenham ouvido o mesmo disco em repeat durante meses, não sabem
os títulos das músicas, muito menos a ficha técnica. Sou das que veem o
filme mas se esquecem do fim. Sou das que tantas vezes deixam o livro
a meio, porque a vida se intromete e depois já não regressam porque
esqueceram o caminho.
Alguma cultura visual. Alguma cultura pop. Muita tralha cibernética
a ocupar os arquivos. Mas sobretudo muitas (aparentes) contradições.
Tanto me apanham a ouvir as dissertações de Agostinho da Silva como
a ver tutoriais de maquilhagem no YouTube. Posso ver meia hora do
Programa da Cristina e de enfiada um documentário sobre o trabalho
de Margaret Mead. Passar de Game ofThrones para uma entrevista a Sepp
Holzer sobre permacultura, assistir a um sketch da Amy Schumer e a um
clip da Anitta, acabando num podcast sobre gravidez e puerpério. E viver
nessa mistela de referências e conteúdos em que toda a gente vive nos dias
de hoje, enlameados que estamos de estímulos e ruído.
Mas do que eu gosto mesmo é de uma boa telenovela brasileira
e de programas de comentário político. Um episódio por dia para parar o
pensamento. Remédio santo. E se, durante algum tempo, parei com a novela
por falta de vagar, voltei há poucas semanas e estou muito bem obrigada.
Já o comentário político, parecendo que não, também exige uma certa
disponibilidade. É que quase todos os dias são dias, e eu perco poucos capítulos.
Desde criança que gosto de assistir a debates, apreciar a retórica,
simpatizar ou ficar irritada com os comentadores, assistir ao esgrimir de
argumentos e perceber as pequenas fraquezas de cada um. A desonestidade
intelectual dos demagogos, a paixão inflamada dos mais convictos, as
pequenas picardias ... Enfim, podia ser outro desporto qualquer, mas deu-me
para ver pessoas de blazer à volta de uma mesa a interromperem-se.
Já as telenovelas da Globo, deve ter sido pelo efeito fruto proibido. É que,
apesar de serem as melhores novelas do mundo, estou convencida de que o
meu interesse tem menos que ver com a sua qualidade, e mais com o facto de
o meu pai não me ter deixado ver durante anos (por achar que eram demasiado
deseducativas). De qualquer forma, se tantas vilanias, canalhices e intrigas são
desadequadas ao público infantil, o comentário político também não era melhor.
É verdade que, nas novelas, os protagonistas são, em geral, mais bem-
-parecidos. Mas no comentário político, os enredos, as narrativas e os
personagens são igualmente bons, e a verdade é que fazem ótimo folhetim
com muito menos orçamento. Entre Cauã Reymond e Jorge Coelho, há uma
evidente diferença de sex appeal, mas ninguém se atreve a dizer que
os vilões do processo Marquês, o triângulo amoroso da Geringonça ou
as lutas pelo poder dentro do PSD são menos interessantes do que os
encontros e desencontros de Amadeu e Maria da Paz em Dona do Pedaço.
Ninguém poderá dizer que nas tricas do comentário político há menos
entusiasmo em tecer narrativas emocionantes, semana após semana. Menos
dramatismo em relatar traições e desamores, ora de Costa a Catarina e
Jerónimo ora de Marcelo à direita. Ninguém se atreve a dizer que Marques
Mendes gere pior o suspense na construção de intriga do que Aguinaldo
Silva. Ou que se enche menos o chouriço para garantir audiência, nas
semanas em que a trama está menos suculenta (veja-se o verbo mal gasto
a debater o discurso do 10 de Junho de João Miguel Tavares). E, sobretudo,
ninguém poderá dizer que se constroem arqui-inimigos mais fraquinhos.
Novela é novela, com Juliana Paes ou Pacheco Pereira, e só mesmo com
muito snobismo intelectual é que se poderá dizer o contrário. lll [email protected]