Revista LPV (4) PDF

(Anita Santana) #1

nossas peles, que define a saudação, seja sorriso, seja
disparo, que se colhe?
Nos olhares arredios, de desinteressados a cínicos,
percebo que querem, anseiam por dizer, ainda que num
jato de vômito: “Seu filho está morto, dona. Pare de nos
aporrinhar”. Mas não dizem. E que diferença faria? Sem
corpo não há evidências, e eu mantenho minha
esperança como quem zela pela própria honra, como
quem guarda uma cidadela.
Quando faço café pela manhã, oito anos, meu Deus!,
ainda me pego distraída, colocando pó suficiente para
dois cafés. Um dia talvez ele entrará por aquela porta, e
poderá estar sujo, fedido, esfarrapado; pode vir sozinho
ou já com uma família, com um neto. Eu vou esperar. Um
dia depois do outro.
Num sábado em maio, na véspera do Dia das Mães, fui a
uma reunião de mães de desaparecidos. Lá ganhei um
livrete de informações sobre a Ong que promovia o
encontro, e no livrinho havia muitas frases sobre o que é
ser mãe. Muitas delas tão bonitas que cheguei a decorar,
e vou bordar num pano de prato para deixar na cozinha.
Em meio a tantas frases bonitas, uma ali me perturbou.
Achei triste, mas depois entendi, alguma coisa em mim
entendeu. E aquilo foi estranho, aquela frase me deu
força, me amamentou. A frase é de uma pessoa
chamada Maeterlink, não sei se homem ou mulher pois
dela nunca ouvi falar: “As mulheres jamais se cansam de
ser mães: embalariam até a Morte, se ela viesse dormir
em seus joelhos.”
É difícil de entender. E ao mesmo tempo é isso.
Com o tempo uma mãe sozinha como eu, “viúva de pai e
filho”, a quem o mundo lá fora tanto fez para apequenar,
sem perceber vai ficando tão maior que a morte que
quando dá por si já não a teme; vai cabendo nela que a
morte não pode lhe arrancar o estado de mãe. Mesmo
doído, o coração se agiganta, passa por sobre a morte e
suas aparências como um trator.
Vivo ou morto, meu filho é eterno. Tudo se resume a uma
medida de distância.

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