Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 23


bloco dirigente criticado por sua gestão
fiel ao neoliberalismo.
Essa “nova esquerda” institucional
chamada de “frenteamplista” se afirma
reformista e pós-neoliberal, bem longe
do rótulo de “esquerda radical” que lhe
é preguiçosamente atribuído pela im-
prensa internacional ou das acusações
de comunista proferidas pela grande
mídia chilena. Vencendo as primárias
contra o popular (e mais marcadamente
à esquerda) prefeito comunista Daniel
Jadue, a tática de Boric e da Frente Am-
pla deu frutos. No pacote de seu progra-
ma presidencial, estão em especial uma
nova política fiscal, que, entre outras
coisas, taxaria as grandes fortunas e as
grandes empresas, a fim de alimentar
reformas sociais. Essas reformas estão li-
gadas à saúde pública, ao financiamento
da educação, à retomada do sistema de
aposentadorias (privatizado pelo gene-
ral Augusto Pinochet) por uma entidade
pública, à legalização do aborto e a uma
política em favor dos direitos das mulhe-
res e das minorias sexuais. Somam-se a
isso a busca por um modelo econômico
“mais verde” e a negociação de novos di-
reitos fundamentais para as comunida-
des do povo Mapuche em torno de suas
demandas históricas, em particular o
direito à autodeterminação, a restituição
de terras ancestrais das comunidades e a
construção de um Estado plurinacional.
A plataforma conseguiu adesões
que vão muito além da Apruebo Dig-
nidad. Mas o aumento espetacular da
participação no segundo turno – espe-
cialmente nos centros urbanos e em
regiões mais hostis à esquerda durante
o primeiro turno (como Antofagasta)



  • é resultado sobretudo de uma reação
    ao surgimento de uma extrema direita
    cujas reuniões eram frequentemente
    embaladas por canções em glória do ge-
    neral Pinochet. Os votos, portanto, tam-
    bém foram contra Kast, e não apenas em
    favor de Boric. Isso é evidenciado pelas
    múltiplas declarações de coletivos e or-
    ganizações sociais ou feministas, como
    a Assembleia Popular de La Granja, em


Santiago, que após deliberação decidiu
“se levantar contra o fascismo”, sem dar
carta branca a Boric.^5
Em seu primeiro discurso como pre-
sidente eleito, Boric teve o cuidado de
frisar que seria o presidente de “todas
as chilenas e de todos os chilenos”, inse-
rindo em sua fala algumas referências a
Salvador Allende, o presidente socialis-
ta morto durante o golpe de Estado de

1973.^6 Ele ressaltou que defenderia o
processo constituinte em curso, “moti-
vo de orgulho mundial”: “É a primeira
vez que escrevemos uma Constituição
de forma democrática. Vamos defen-
der esse processo para que essa Carta
Magna seja fruto de acordo, e não de
imposição”. De fato, após o referendo
de outubro de 2020 e a eleição de uma
Convenção Constitucional por sufrágio
universal em maio deste ano, o Chile
está finalmente a caminho de acabar de
vez com a Constituição de 1980, herda-
da de Pinochet.^7 Essa assembleia viu os
partidos tradicionais de centro-esquer-
da e centro-direita ficarem em posição
minoritária, em benefício dos indepen-
dentes (em parte oriundos de movimen-
tos sociais, especialmente feministas, e
de organizações de povos indígenas) e
da esquerda (em torno do Partido Co-
munista e da Frente Ampla). Kast, ao
contrário de Boric, sempre mostrou seu
desejo de inviabilizar o projeto.
Ainda que Boric tenha anunciado
“mudanças estruturais, sem deixar nin-
guém para trás; [que] é preciso crescer
economicamente, converter o que mui-
tos consideram bens de consumo em
direitos sociais, seja qual for o tamanho
da carteira”, ele buscou dar garantias aos
adversários, prometendo ser “sério”. O
entreturnos foi marcado por uma reo-
rientação programática rumo ao centro,
para grande desgosto do Partido Co-
munista. Boric aproximou-se dos parti-
dos da antiga Concertación, a ponto de
integrar em sua equipe alguns de seus
economistas mais destacados – como
o ex-diretor do Banco Central Roberto
Zahler e o liberalíssimo Ricardo Ffren-


ch-Davis –, na perspectiva de “tranqui-
lizar os mercados”. Além dos esforços
para obter o apoio dos ex-presidentes
social-liberais Ricardo Lagos e Michelle
Bachelet, Boric conversou com o grande
patronato (em uma reunião organizada
durante o Encontro Nacional de Empre-
sários, Enade). Após se comprometer a
respeitar o orçamento de austeridade
votado pelo Congresso para 2022, ele
acaba de rever para baixo suas ambições
fiscais: seu projeto de novos impostos
caiu progressivamente do equivalente a
8 pontos do PIB em dois períodos para
um muito mais modesto objetivo de 5
pontos em quatro ou cinco anos, a de-
pender do ritmo de crescimento... Uma
revisão apresentada como demonstra-
ção de “responsabilidade” fiscal e de-
terminação em controlar a inflação. No
entanto, a questão da desigualdade (1%
dos mais ricos concentram cerca de um
terço da renda do país), da precariedade
da vida e do endividamento está no cer-
ne da crise que atravessa esse “paraíso
neoliberal”.^8 Os temas da delinquência
e do narcotráfico também apareceram
no discurso do candidato, como uma
resposta ao programa securitário desen-
volvido com sucesso por Kast.
Para Binyamin Appelbaum, colunis-
ta do jornal The New York Times, “o que
Gabriel Boric defende se chama social-
-democracia”. De forma alguma se pode
qualificar seu projeto como “comunista”,
explica.^9 Apesar do pavor – frequente-
mente exagerado – dos partidários de
Kast, Boric nunca levantou a possibilida-
de de recuperar, mesmo parcialmente, o
controle público dos imensos bens natu-
rais do país, que está nas mãos de mul-
tinacionais e da burguesia exportadora.
Aqui se pode pensar particularmente nas
gigantescas jazidas de lítio e de cobre, a
respeito das quais ele falou em elevar os
royalties pagos pelos operadores priva-
dos. O que Allende chamava de “salário
do Chile” continua ausente do progra-
ma dessa “nova esquerda”, enquanto seu
aliado comunista acredita que não é hora
de voltar a falar sobre nacionalizações.

Apesar de toda essa cautela, a coa-
lizão vitoriosa permanece suspeita aos
olhos de alguns membros da elite. No
dia seguinte à eleição, Ignacio Walker,
ex-ministro democrata cristão e modelo
do neoliberalismo “à chilena”, revelou-
-se preocupado em saber se a orienta-
ção “social-democratizante” e “refor-
mista” do novo representante eleito


  • considerada bem-vinda – não consti-
    tuiria uma fachada para poder retornar
    com mais tranquilidade à estratégia de
    “refundação que caracterizou o Partido
    Comunista e os partidos da Frente Am-
    pla”.^10 A participação dos comunistas
    no governo preocupa as altas esferas,
    deixando entrever o espectro de um re-
    torno da “via chilena para o socialismo”
    e da Unidade Popular (1970-1973). O
    Partido Comunista, porém, insistiu no
    fato de que respeitaria os compromissos
    do candidato, assim como demonstrou
    sua própria capacidade de moderação
    quando participou da “Nova Maioria”,
    inaugurada para o segundo mandato de
    Michelle Bachelet (2014-2018).
    À esquerda, Boric tem sido critica-
    do por parte dos movimentos sociais,
    menos preocupados do que ele com a
    busca por consensos. Algumas vezes
    colaram nele o rótulo de amarillo (ama-
    relo). De fato, o candidato manteve uma
    ambiguidade sobre a questão Mapuche
    ou sobre a problemática do direito tra-
    balhista. Ele não quis defender a ideia
    de uma anistia geral para aqueles que o
    movimento social chama de “presos po-
    líticos da revolta”, alguns na cadeia, ou-
    tros em prisão domiciliar há dois anos,
    sem julgamento. O jovem presidente
    eleito é, como tal, muitas vezes confron-
    tado com seu polêmico papel durante a
    grande revolta de outubro de 2019, uma
    explosão de fúria contra o “modelo ne-
    oliberal”, que não conseguiu derrubar o
    governo Piñera e enfrentou uma repres-
    são do Estado que não se via desde 1990.
    Boric é um dos deputados que, em 15 de
    novembro de 2019, deu origem ao acor-
    do pela “paz social e a nova Constitui-
    ção”, assinado pela direita e pelo centro,

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