Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

24 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


mas sem o Partido Comunista e parte
da Frente Ampla, que denunciou sua
elaboração entre quatro paredes, dando
as costas aos manifestantes. O acordo,
que possibilitou o estabelecimento da
Convenção Constitucional, também é
considerado por alguns militantes uma
tábua de salvação para Piñera e uma
tentativa de canalização institucional
das lutas, em um momento no qual o
país estava sob estado de exceção. Um
mês depois, Boric também votou a favor
da ainda mais polêmica “lei antibarri-
cadas e antissabotagem”, que oferecia
respaldo legal à repressão institucional,
em um momento no qual as violações
dos direitos humanos cometidas pelas
forças policiais eram fortemente critica-
das (inclusive em nível internacional). O
deputado Boric e seus colegas da Frente
Ampla pediram desculpas, depois, por
essa votação no Parlamento ao lado da
direita... Finalmente, em uma região
onde a esquerda mostra de bom grado
seu apoio incondicional à Revolução
Cubana, a escolha de Boric em apoiar as
manifestações de julho de 2021 na gran-
de ilha do Caribe foi vista por alguns
como uma traição.
Ocorre que o “espírito rebelde de
outubro” ainda está muito presente na
sociedade chilena. Pudemos ouvi-lo
novamente nos gritos e nas palavras
de ordem atravessando a multidão que
veio comemorar a vitória da esquerda
nas ruas do país e na “Praça da Digni-
dade” em Santiago, no domingo, 19 de
dezembro. E, mesmo que as assem-
bleias territoriais tenham perdido vita-
lidade após meses de pandemia e crise
econômica, as múltiplas demandas por
justiça social ainda estão lá, e o fogo da
revolta continua a arder.


IMPACTO NA REGIÃO
Ex-ativista e excelente organizador, o
novo presidente sabe muito bem dis-
so. Ele promete um “Chile mais justo” e
“ampliar os direitos sociais”, embora re-
conheça que “os tempos vindouros não
serão fáceis”... O país já vive uma consi-
derável fuga de capitais, que reduzirá a
margem de manobra do recém-chegado.
Ele terá de lidar com um poder legislati-
vo que lhe será amplamente hostil, pois,
se os “velhos” partidos foram expulsos
do segundo turno das eleições presiden-
ciais e relegados para a terceira e a quar-
ta posição, eles continuam presentes
nas prefeituras, nos governos regionais
e no Congresso. Nas eleições parlamen-
tares de novembro, a direita conquistou
a maioria no Senado. A câmara baixa
está cindida ao meio, entre esquerda/
centro-esquerda e direita/extrema di-
reita. A esquerda parlamentar se forta-
leceu, sobretudo os comunistas (com 12
deputados) e 37 cadeiras no total para a
Apruebo Dignidad (em uma instituição
de 155 assentos), ao mesmo tempo que
consolidou sua ancoragem municipal
em comunas essenciais, como o centro


de Santiago, Valparaíso, Viña del Mar e
Valdivia (no sul). Mas, para realizar qual-
quer reforma importante, o Executivo
progressista terá de passar por negocia-
ções amargas com o centro e os partidos
da antiga Concertación, dos quais Boric
é um adversário de longa data e que há
muito tempo se mostram hostis a qual-
quer mudança substancial.
Por fim, se Kast acabou de perder
uma batalha, ele está muito longe de es-
tar vencido. Provavelmente está apenas
começando sua ascensão. De qualquer
forma, essa foi a ideia que defendeu pe-
rante seus apoiadores na noite da derro-
ta. O “Bolsonaro chileno” pretende con-
tinuar ganhando terreno: irmão de um
ex-ministro da Economia da ditadura e
filho de um nazista alemão, ele pode dar
a impressão de encarnar o velho mundo
autoritário dos anos 1980. Mas estabe-
lecer essa análise significaria subesti-
mar um fenômeno em curso por toda a
América Latina: a emergência de direitas
radicais, que se baseiam em um discur-
so moral, nas igrejas evangélicas e nas
correntes católicas fundamentalistas, na
agitação xenófoba hostil aos migrantes
e no medo das conquistas feministas e
do movimento LGBTQIA+. Kast ficou sa-
tisfeito com sua forte presença no Par-
lamento, com quinze deputados e um
senador, enquanto a direita tradicional
mantém sua hegemonia no campo con-
servador, embora tenha recuado de 72
para 53 deputados.
Certamente, o povo chileno acaba
de arrebatar uma importante vitória,
que explica o impacto regional e mun-
dial dessa eleição. É agora que tudo co-
meça.

*Franck Gaudichaud é professor universi-
tário e autor, com Thomas Posado, de Gou-
vernements progressistes en Amérique lati-
ne (1998-2018) [Governos progressistas na
América Latina (1998-2018)], publicado pe-
la Presses Universitaires de Rennes (2021).
1 Ler Franck Gaudichaud, “Au Chili, les vieilles
lunes de la nouvelle droite” [Chile: as velhas
luas da nova direita], Le Monde Diplomatique,
maio 2011.
2 La Tercera, Santiago do Chile, 20 dez. 2021.
3 Ler Victor de la Fuente, “En finir (vraiment) avec
l’ère Pinochet” [Encerrar (de verdade) a era Pi-
nochet], La Valise Diplomatique, 24 ago. 2011.
4 Ler Camilla Vallejo, “Quand le mythe néoli-
béral chilien vacille” [Quando o mito neolibe-
ral chileno fraqueja], La Valise Diplomatique,
2 nov. 2011.
5 Marco Teruggi, “De la abstención al voto anti-
-Kast: las razones de protagonistas del estal-
lido” [Da abstenção ao voto contra Kast: as
razões de protagonistas da revolta social],
Sputnik Mundo, 17 dez. 2021.
6 Ler Renaud Lambert, “Quand les militaires
fauchent l’espoir d’une nouvelle voie vers le
socialisme” [Quando os militares acabam
com a esperança de um novo caminho rumo
ao socialismo], La Valise Diplomatique, 11
set. 2013.
7 Ler Franck Gaudichaud, “Au Chili, le pari de la
Constitution” [No Chile, a aposta da Consti-
tuição], Le Monde Diplomatique, abr. 2021.
8 Ler Luis Sepúlveda, “Au Chili, l’oasis assé-
chée” [No Chile, o oásis seco], Le Monde Di-
plomatique, dez. 2019.
9 Diario Financiero, Santiago do Chile, 8 dez. 2021.
10 El Mostrador, Santiago do Chile, 20 dez. 2021.

ESQUI DÁ OS PRIMEIROS PASSOS NO PAÍS DOS JOGOS OLÍMPICOS DE INVERNO


“O maior mercado


de esquiadores


iniciantes”


A China às vezes se atrasa, mas, quando os dirigentes e
empresários se envolvem, tudo muda na hora. Os esportes
de inverno quase não existiam em 1995. Perto dos Jogos
Olímpicos, que acontecerão em fevereiro, o país totaliza cerca
de oitocentas estações. As melhores pistas de esqui são
cobertas e podem acolher simultaneamente 3 mil praticantes

POR JORDAN POUILLE*

A


poucas semanas dos Jogos Olím-
picos (de 4 a 20 de fevereiro de
2022), os telespectadores chine-
ses descobriram na rede pública
CCTV um curto documentário intitula-
do “Os guardiães da Montanha Branca”,
louvando o heroísmo dos trabalhadores
das pistas. Vemos ali Sun Duncheng, de
53 anos, empregado na estação de esqui
de Fusong, província de Jilin (nordeste
da China). O bom homem é operador de
canhões de neve, que aciona das 8 horas
da noite às 8 da manhã. Uma manguei-
ra de água que entope, um giro irregu-
lar: à menor anomalia, as máquinas en-
viam alertas para seu smartphone. As
câmeras se voltam em seguida para Gao
Wenbin e seu trator, que deve aplainar
trinta pistas à luz de seus faróis super-
possantes. “A neve criou novas oportu-
nidades de emprego”, conclui o narra-
dor, lembrando que o governo pretende
converter 300 milhões de chineses aos
esportes de inverno.
Como faz todos os anos desde 2016,
Wu Bin, professor da Universidade dos
Esportes de Pequim, mas também vi-
ce-presidente da Associação do Esqui
da China e ex-diretor de Estratégia da
Vanke, um dos principais promotores
imobiliários do país, publicou em julho
último seu “livro branco” sobre a indús-
tria do esqui, que apresenta um retrato
minucioso do assunto. O país tem 770
estações de esportes de inverno; havia
apenas uma em 1996 e duzentas em


  1. Em um ano (de abril de 2020 a
    abril de 2021), contabilizaram-se 20.760
    milhões de “jornadas de esquiadores”,
    praticadas sobretudo por menores de 50
    anos (83%) e em neve artificial (80% dos
    casos). Isso indica que o público está
    apenas começando: só cerca de 22% das
    pistas oferecem um desnível superior a
    100 metros. “A China pode ser conside-
    rada o maior mercado de esquiadores


iniciantes do mundo”, resumem os pes-
quisadores franceses Arnaud Waquet e
Sarah Mischler.^1 E acrescentam: “É pre-
ciso desenvolver um método simples
para aprender em menos de um dia,
sobretudo a fim de atrair a classe média
alta”. Com efeito, os chineses não consi-
deram o esqui um esporte que necessita
de treinamento, somente um breve pro-
duto de diversão. “Após duas ou três ho-
ras de prática, as pessoas interrogadas
afirmam que desejam fazer outra coisa
na estação: compras, spa, banhos quen-
tes. Mas a atividade mais citada é ir ao
restaurante!”

TELEFÉRICOS FRANCESES
Os praticantes mais ricos frequentam
as estações do nordeste, com seus sí-
tios de Beidahu e Yabuli, onde o Clube
Med, propriedade do chinês Fosun des-
de 2015, foi construído. Em dezembro,
suas tarifas para pensão completa, com
passagem e equipamento, variavam en-
tre 2 mil e 3 mil euros por pessoa e por
semana (de duas a três vezes o salário
mensal médio em Pequim ou Xangai).
Esses locais atraem os mais prósperos,
residentes sobretudo em Hong Kong,
privados há dois anos de suas escapa-
das para Aspen ou Courchevel (que até
dispõe de uma instrutora chinesa auto-
rizada), em razão da pandemia e do fe-
chamento das fronteiras.
O esporte de inverno em grande es-
cala constitui a sequência lógica do de-
senvolvimento do turismo interno, que
vai ficando cada vez mais complexo e
diversificado. Ele apareceu “no fim dos
anos 1990 graças a uma série de refor-
mas do tempo de trabalho e, em segui-
da, da adoção das semanas de ouro”, isto
é, dos feriados especiais que o governo
concede aos assalariados por ocasião
do Ano-Novo chinês e da festa nacional
(1º de outubro). “Não foi por acaso que
Free download pdf