Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

28 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


RUPTURA DIPLOMÁTICA E DISCURSOS BÉLICOS


Queda de braço


entre o Marrocos


e a Argélia


Os tempos da convivência indiferente entre
Argel e Rabat parecem ter ficado no passado.
A questão do Saara Ocidental, sem resolução desde
1975, envenena novamente as relações entre os dois
pesos-pesados do Magreb. Soma-se a isso a aproximação
do Marrocos com Israel, vista pelas autoridades argelinas
como uma ameaça militar direta

POR LAKHDAR BENCHIBA E OMAR-LOTFI LAHLOU*

E


m março de 2022, dez seleções
africanas vão disputar as elimina-
tórias para a Copa do Mundo de
futebol, que deve acontecer em
novembro, no Catar. Em grupos dife-
rentes, as equipes da Argélia e do Mar-
rocos com certeza não vão se encontrar.
Dos dois lados da fronteira, tanto para
os torcedores como para quem não liga
para o jogo, é um alívio. Em um contex-
to de agressões recorrentes desde de-
zembro de 2020, isso afasta o fantasma
das agressões nacionalistas e de inci-
dentes que podem desembocar no pior.
Desde a independência da Argélia,
em 1962, o tempo raramente foi bom
entre Argel e Rabat, e as relações nunca
deixaram de ser marcadas pela descon-
fiança. As diferenças na fronteira – ori-
gem principalmente da Guerra das
Areias, em outubro de 1963 – e a ques-
tão do Saara Ocidental – território rei-
vindicado pelo Marrocos e sobre o qual
a Argélia reclama um plebiscito de au-
todeterminação em benefício de sua
população ao mesmo tempo que apoia
os independentistas da Frente Popular
de Libertação da Saguía el Hamra e do
Río de Oro (Frente Polisário) – impe-
dem qualquer normalização entre os
dois vizinhos. Isso também gera um
obstáculo ao processo de união e de in-
tegração econômica magrebina, a
União do Magreb Árabe (UMA), procla-
mada em Marrakesh em fevereiro de
1989 e que hoje é só uma casca vazia.
Há mais de quatro décadas a situa-
ção do Saara não progrediu em nada,

apesar da proclamação de um cessar-
-fogo, em setembro de 1991, entre Rabat
e a Frente Polisário. Como solução de
“compromisso”, o reino marroquino
propôs uma autonomia mais ou menos
ampla – mas sob sua soberania –, o que
a Argélia recusa. A Argélia reconhece a
República Árabe Saarense Democrática
(Rasd), para a qual favoreceu, em 1982,
a adesão na União da Organização Afri-
cana (hoje União Africana, UA), provo-
cando, em retorno, dois anos depois, a
partida do Marrocos dessa instituição
(Rabat voltou à UA em janeiro de 2017).
A essa questão principal do Saara,
acrescentam-se outras discórdias. Ar-
gel acusa o Marrocos de não fazer nada
para impedir o contrabando e o tráfico
de drogas em sua fronteira. Rabat esti-
ma que a recusa de Argel em discutir a
reabertura das fronteiras terrestres,
fechadas desde 1994, visa punir o rei-
no, asfixiando suas províncias orien-
tais, tradicionalmente abertas para o
oeste argelino.
Nestes últimos tempos, a paz fria
entre os dois rivais pouco a pouco deu
espaço a discursos belicosos. Em 24 de
agosto passado, o ministro argelino das
Relações Exteriores, Ramtane La-
mamra, anunciou a ruptura das rela-
ções diplomáticas com Rabat. Essa de-
cisão constituiu a conclusão lógica de
uma escalada iniciada em 20 de dezem-
bro de 2020 com o anúncio de uma ne-
gociação concluída entre a administra-
ção de Donald Trump e o reino do sherif
a respeito do reconhecimento norte-a-

mericano da “marroquinidade” do Saa-
ra Ocidental, em contrapartida da nor-
malização nas relações entre o
Marrocos e Israel – um país que a Argé-
lia considera seu inimigo e com o qual
não tem nenhuma relação diplomática.
Mesmo oficialmente minimizada, a
decisão de Trump constituiu um gran-
de revés para Argel, ainda mais porque
não foi invalidada pela administração
de Joe Biden. A aproximação entre
Washington, Tel Aviv e Rabat – à qual se
acrescentam as tensões entre Paris e
Argel em diversos casos,^1 entre os quais
o do Sahel – confirmou o sentimento de
cerco dentro do regime argelino. Este é
perceptível desde os movimentos de re-
voltas do mundo árabe, em 2011, e foi
amplamente acentuado, em 2019, pela
contestação popular organizada pelo
Hirak. O anúncio por cerca de vinte
países africanos e árabes da abertura
de consulados ou de representações
comerciais no Saara Ocidental agravou
esse sentimento de isolamento diplo-
mático, enquanto dois outros fatos pro-
vocaram a ira dos dirigentes argelinos.

PROVOCAÇÕES MÚTUAS
Em primeiro lugar, as revelações sobre
o uso pelo Marrocos do programa is-
raelense Pegasus, que permitiu a espio-
nagem do telefone de mais de 6 mil per-
sonalidades argelinas: dirigentes
políticos, militares, chefes de serviços
de informação, altos funcionários, di-
plomatas estrangeiros ou militantes
políticos, incluindo da oposição.^2 Para

Argel, o fato de que essa espionagem foi
possibilitada graças a um programa is-
raelense é considerado uma circuns-
tância agravante. E, ainda por cima, o
ministro israelense das Relações Exte-
riores, Yair Lapid, atiçou o fogo, em 12
de agosto de 2021, quando esteve em vi-
sita oficial a Casablanca: na presença
de seu homólogo marroquino, Nasser
Bourita, ele evocou suas “preocupa-
ções a respeito do papel da Argélia na
região, sua aproximação com o Irã e a
campanha que ela conduzia contra a
admissão de Israel como membro ob-
servador da União Africana”.
Não foi preciso mais nada para que
as autoridades argelinas denuncias-
sem as “ameaças mal disfarçadas” às
suas fronteiras. “Nunca, desde 1948,
um membro do governo israelense
pronunciou ameaças contra um país
árabe estando no território de outro
país árabe”, declarou Lamamra depois
de ter anunciado a ruptura das rela-
ções diplomáticas com Rabat. Desde
então, a assinatura de um acordo de
segurança entre o Marrocos e Israel,
em 24 de novembro, em uma visita ao
reino do ministro israelense da Defesa,
Benny Gantz, só provocou o aumento
da desconfiança.
O segundo motivo para a cólera de
Argel foi a distribuição, durante uma
reunião do movimento dos países não
alinhados em Nova York, em 13 e 14 de
julho, de uma nota por parte do embai-
xador do Marrocos nas Nações Unidas,
Omar Hilale, afirmando que o “valente

A região do Saara Ocidental segue em disputa com o Marrocos desde 1975
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