Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 29


povo kabyle merece, mais que qualquer
outro, gozar plenamente de seu direito
à autodeterminação”. Uma espécie de
revanche, já que Argel apoia a autode-
terminação dos saarenses; então Rabat
faz o mesmo com os kabyles, dando
crédito às teses do Movimento pela Au-
tonomia da Kabília (MAK), um partido
agora considerado terrorista pelas au-
toridades argelinas. Para estas, a cons-
tatação é clara: ao normalizar suas re-
lações com Israel, cuja inf luência nos
Estados Unidos é grande, o Marrocos
se sente poderoso.
A essas discórdias, a comunicação
oficial argelina acrescentou a acusa-
ção de uma coalizão do Marrocos com
os separatistas do MAK nos incêndios
que destruíram o norte do país duran-
te o verão, fazendo mais de noventa
mortos. A suspeita contra o MAK e
contra Rabat nessas destruições serve
principalmente para confortar o dis-
curso, de uso interno, sobre uma
ameaça às fronteiras e para forçar a
contestação simbolizada pelo Hirak a
ser mais contida. No entanto ela pres-
ta um desserviço à comunicação do
regime no exterior. A mídia francesa,
por exemplo, deu ênfase a essa acusa-
ção para ressaltar sua inverossimi-
lhança. Por outro lado, as discórdias,
mais sérias, em relação ao uso do pro-
grama Pegasus foram praticamente
ignoradas, e diversos argelinos, in-
cluindo membros da oposição, consi-
deram essa espionagem maciça um
motivo para guerra.


Do lado do Marrocos, as autorida-
des primeiro se contiveram após a
ruptura das relações diplomáticas.
Elas aceitaram a decisão de Argel, mas
a julgaram “completamente injustifi-
cada”. Um comunicado do Ministério
das Relações Exteriores condenou a
“lógica de escalada” e rejeitou “os pre-
textos falaciosos, até mesmo absur-
dos, implicados”, garantindo que “o
reino do Marrocos continua sendo um
parceiro digno de crédito e leal para o
povo argelino”.
No entanto, Rabat não ficou de bra-
ços cruzados e buscou tirar vantagem.
Fortalecidos pelo apoio norte-america-
no, os diplomatas do reino pressiona-
ram a Europa, principalmente a Espa-
nha, para que se alinhasse com
Washington a respeito do Saara. “A Eu-
ropa precisa sair de sua zona de confor-
to e seguir a dinâmica dos Estados Uni-
dos”, declarou Bourita em 15 de janeiro
de 2021. “Quando Trump reconhece
que o Saara pertence ao Marrocos, é
uma grande vitória para o reino”, esti-
ma um ex-ministro socialista marro-
quino. “Até então, Washington sempre
adotou uma postura equilibrada em re-
lação ao conf lito, mesmo se, no plano
militar, o Marrocos sempre tenha sido
seu aliado, diferentemente da Argélia,
mais próxima do bloco do Leste na épo-
ca e, ainda hoje, da Rússia.”
Na ONU, longe de ter sido descredi-
tado pelo Palácio depois de sua provo-
cação relativa à autodeterminação dos
kabyles, Hilale manteve a pressão. No
início de novembro, tomando a palavra
diante da quarta Comissão da Assem-
bleia Geral da ONU, ele declarou que “a
principal responsabilidade da Argélia
na criação e na manutenção do conf lito
regional sobre o Saara marroquino foi
estabelecida em todos os planos: políti-
co, diplomático, militar, jurídico e hu-
manitário”. E acrescentou: “o Marrocos
está em seu Saara e o Saara está no
Marrocos”. A frase fazia eco ao recente
discurso televisivo do rei Mohammed
VI na ocasião do 46º aniversário da
Marcha Verde, ao longo da qual 350 mil
marroquinos se dirigiram ao Saara
Ocidental para reivindicar seu perten-
cimento ao reino. “Hoje, como no pas-
sado, a marroquinidade do Saara não
será assunto para nenhuma negocia-
ção”, declarou o soberano para deixar
bem claro para a Argélia que não é hora
para um compromisso.
O reino registrou, no entanto, seus
reveses. Em 10 de junho passado, uma
resolução do Parlamento Europeu re-
jeitou “a utilização pelo Marrocos dos
controles nas fronteiras e da migração,
principalmente de menores não acom-
panhados, como meio de pressão polí-
tica sobre um Estado-membro da
União Europeia”. Esse posicionamen-
to foi consequência da entrada de mi-
lhares de marroquinos no enclave es-
panhol de Ceuta, no norte do país,

para forçar a Espanha a se alinhar à
posição norte-americana. Em seguida,
em 29 de setembro, o Tribunal da
União Europeia anulou duas decisões
do Conselho Europeu relativas, por
um lado, ao acordo entre a União Eu-
ropeia e o Marrocos, modificando as
preferências tarifárias acordadas pela
UE aos produtos de origem marroqui-
na e, por outro lado, ao seu acordo de
parceria na área da pesca sustentável.
Nos dois casos, a Corte estimou que
esses acordos não podiam dizer res-
peito ao Saara e suas águas territoriais.
Ainda mais importante, estimou que o
papel e a representatividade da Frente
Polisário enquanto requerente “são de
natureza a lhe conferir a capacidade
de agir diante do juiz da União Euro-
peia” na medida em que este último “é
reconhecido no plano internacional
enquanto representante do povo do
S a a r a O c i d e n t a l ”.

FORÇAS ARMADAS
QUE SE EQUIVALEM
A ruptura das relações diplomáticas
por Argel não encerrou a queda de bra-
ço entre os dois países. Em 22 de setem-
bro, o espaço aéreo argelino foi interdi-
tado aos aviões marroquinos. Em 31 de
outubro, a Argélia fechou as válvulas
do Gasoduto Magreb-Europa (GME),
que fornecia gás, desde 1996, para Es-
panha e Portugal, via Marrocos. Este se
viu, assim, privado de cerca de 1 bilhão
de m^3 de gás natural – dos quais uma
parte cobre o direito de passagem, o
que representa 97% de suas necessida-
des. Agora, as entregas para Madri
acontecem pelo Gasoduto Medgaz, que
liga diretamente a Argélia à Espanha e
cujas capacidades podem conduzir de
8 bilhões a 10 bilhões de m^3. Isso não
cobre as necessidades espanholas, mas
os responsáveis argelinos se compro-
meteram a entregar a diferença em for-
ma de gás natural liquidificado via
transportadores. Assim, a Espanha se
encontra no meio de um fogo cruzado.
Para levá-la a se dobrar em sua posição
e a reconhecer a “marroquinidade” do
Saara, Rabat agita a arma migratória,
enquanto Argel se vale do estoque de
gás para deixar claro para Madri que tal
reconhecimento lhe seria prejudicial.
Ao mesmo tempo, a situação se-
curitária se deteriora no Saara. Primei-
ro, uma operação militar conduzida
em 13 de novembro de 2020 pelo Mar-
rocos na zona de Guergerat, no extre-
mo sul do Saara Ocidental, pôs fim a
um longo status quo e levou a Frente
Polisário a romper o cessar-fogo de


  1. Em 19 de novembro, o chefe do
    movimento, Brahim Ghali, declarou
    que “o povo saarense escolheu e tomou
    a decisão soberana de intensificar sua
    justa guerra de libertação por todos os
    meios legítimos, em primeiro lugar a
    luta armada, até o estabelecimento da
    soberania da República Saarense no


conjunto de seu território”. Mesmo que
subsistam dúvidas sobre a capacidade
da Frente Polisário de dirigir opera-
ções de envergadura nos territórios
controlados pelo Marrocos, a ameaça
de uma retomada dos combates contri-
bui para agravar as tensões, ainda
mais porque a Argélia também está en-
volvida na insegurança da região.
Em 1º de novembro, dia da come-
moração do início da guerra de inde-
pendência e dia seguinte da decisão
argelina de interromper as exporta-
ções de gás, três caminhoneiros argeli-
nos de volta de um transporte comer-
cial entre Ouargla e Zouerate, na
Mauritânia, foram mortos em um
bombardeio, provavelmente por um
drone, não distante de Bir Lahlou, em
território sob controle da Frente Poli-
sário. Dois dias depois, a presidência
argelina reagiu com veemência, acu-
sando as “forças de ocupação marro-
quinas” e prometendo que esse “assas-
sinato” não ficaria impune.
A situação pode evoluir para um
conf lito armado entre a Argélia e o
Marrocos? Em vista dos últimos acon-
tecimentos, o risco não é negligenciá-
vel. Do lado da Argélia, contam-se 130
mil soldados profissionais, aos quais se
pode acrescentar 150 mil reservistas,
sem esquecer 190 mil homens das for-
ças de segurança. No Marrocos, as For-
ças Armadas reais contam com 310 mil
homens e 150 mil reservistas. São, por-
tanto, dois Exércitos de igual impor-
tância que se enfrentam e poderiam
ser tentados a usar tudo ou parte do
impressionante arsenal acumulado
dos dois lados da fronteira ao longo de
uma década. Entre 2010 e 2020, a Argé-
lia gastou US$ 90 bilhões em equipa-
mentos militares, contra US$ 36 bi-
lhões de seu vizinho.
As próximas semanas dirão se os
dois países vão voltar a posições mais
cordiais. Mas, na ausência de uma me-
diação séria e de iniciativas conjuntas
dos intelectuais dos dois países, mui-
tos temem que as armas acabem fa-
lando, na continuidade de um estouro
no Saara. “Os magrebinos devem se
lembrar da maneira como o Irã e o Ira-
que se destruíram mutuamente”, ad-
verte o escritor e poeta argelino Amin
Khan.^3 “Para o benefício de quem?
Certamente não em benefício dos po-
vos iraquiano e iraniano, nem sequer
de seus regimes.”

*Lakhdar Benchiba e Omar-Lotfi Lahlou
são jornalistas, respectivamente, em Argel
e Casablanca.

1 Ler Akram Belkaïd, “Entre Alger et Paris, cri-
ses et connivences” [Entre Argel e Paris, cri-
ses e conivências], Le Monde Diplomatique,
nov. 2021.
2 “‘Projet Pegasus’: l’Algérie très surveillée par
le Maroc” [“Projeto Pegasus”: a Argélia vigia-
da pelo Marrocos], Le Monde, 20 jul. 2021.
3 Facebook, 5 nov. 2021.

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