Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

A Relação pressupõe alguém que a tenha escrito. Só reconstituindo-a
saberemos quem é: mas já podemos estabelecer alguns dados de sua ficha. O
autor da Relação não pode ter morrido esfaqueado nem estrangulado, pois não
poderia ter inserido no relato a própria morte; quanto ao suicídio, poderia ter
sido decidido antes da redação do caderno-testamento, e cometido depois; mas
quem se convence de ser induzido ao suicídio por vontade alheia não se suicida;
toda e qualquer exclusão do autor do caderno desse papel de vítima aumenta
automaticamente a probabilidade de que se possam atribuir-lhe papéis de
culpado; portanto, ele poderia ser ao mesmo tempo o autor do mal e da
informação sobre o mal. Isso não cria nenhum problema para o meu trabalho: o
mal e a informação sobre o mal coincidem, tanto no livro queimado como no
fichário eletrônico.
A memória armazenou outra série de dados que devem ser postos em
relação com a primeira: são as quatro apólices de seguro feitas com Skiller, uma
por Inigo, outra por Ogiva e duas pela viúva, sendo uma para si e outra para
Belindo. Um fio obscuro talvez ligue as apólices aos Atos abomináveis, e as células
fotoelétricas devem percorrê-lo de novo num vertiginoso cabra-cega,
procurando seu caminho pelos minúsculos orifícios das fichas. Os dados das
apólices, agora traduzidos em código binário, também têm o poder de evocar
imagens em minha mente: é noite, há neblina; Skiller bate à porta da casa no
alto da duna; a dona da pensão o recebe como um novo inquilino; ele tira da
pasta os formulários para os seguros; está sentado no salão; toma chá; não é
decerto numa só visita que consegue que sejam assinados os quatro contratos; é
uma familiaridade assídua que ele estabelece com a casa e seus quatro
moradores. Vejo Skiller ajudando Ogiva a escovar as perucas da coleção (e de
passagem roçando com os lábios o crânio nu da modelo); vejo-o quando, num
gesto firme como um médico e pressuroso como um filho, mede a pressão
arterial da viúva apertando-lhe o braço mole e branco com o
esfigmomanômetro; ei-lo tentando interessar Inigo na conservação da casa,
assinalando-lhe estragos nos encanamentos, vigas de sustentação que estão
cedendo, e, paternalmente, impedindo-o de roer as unhas; ei-lo lendo com
Belindo os jornais esportivos, comentando com tapas nas costas a confirmação
de seus prognósticos.
Positivamente, não acho esse Skiller nada simpático: devo reconhecer. Uma
teia de aranha de cumplicidades se estende para onde quer que ele jogue seus
fios; se de fato ele tinha tanto poder na pensão Roessler, se era o factótum, o
deus ex machina, se nada do que acontecia entre aquelas paredes lhe era
estranho, por que veio pedir a mim a solução do mistério? Por que me
apresentou o caderno queimado? Foi ele que encontrou o caderno entre os
escombros? Ou foi ele que o pôs ali? Foi ele que levou essa quantidade de
informação negativa, de entropia irreversível, que a introduziu na casa, como

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