A GLACIAÇÃO
COM G ELO? Sim? Vou um instante à cozinha para pegar gelo. E a
palavra “gelo” logo se dilata entre mim e ela, nos separa, ou talvez nos una, mas
como a frágil placa que une as margens de um lago gelado.
Se há uma coisa que detesto é ir pegar gelo. Obriga-me a interromper a
conversa mal iniciada, na hora crucial em que lhe pergunto: sirvo-lhe um pouco
mais de uísque?, e ela: obrigada, diz, só um pouquinho, e eu: com gelo? E já me
encaminho para a cozinha como para o exílio, já me vejo lutando com os
cubinhos de gelo que não se soltam da fôrma.
Ora!, digo, é só um segundo, eu também sempre tomo uísque com gelo. É
verdade, o tilintar do copo me faz companhia, me separa do zum-zum dos
outros, nas festas em que há muita gente, me impede de me perder entre as
vozes e os sons flutuantes, nessa flutuação da qual ela se separou quando
apareceu pela primeira vez em meu campo visual, pela luneta emborcada do
meu copo de uísque, suas cores se adiantavam por aquele corredor entre duas
salas cheias de fumaça e música a todo volume, e eu ficava ali com o meu copo
sem ir para lá nem para cá, e ela também, me via numa sombra deformada
através da transparência do vidro do gelo do uísque, não sei se ela ouvia o que eu
dizia porque havia todo aquele zum-zum ou também porque talvez eu não
tivesse falado, tivesse apenas mexido o copo, e o gelo balançando tivesse feito
dlin-dlin, e ela também disse alguma coisa na sua campânula de vidro e gelo, eu
sem dúvida ainda não imaginava que ela viria à minha casa nessa noite.
Abro o congelador, não, fecho o congelador, primeiro tenho de ir pegar o
balde de gelo. Tenha um pouco de paciência, já estou indo. O congelador é uma
caverna polar, pingando de gotas de gelo, a fôrma está grudada no metal por
uma crosta de gelo, agarro-a com esforço, com as pontas dos dedos que ficam
brancas. No iglu, a esposa esquimó espera pelo caçador de focas perdido no
pack. Agora basta uma leve pressão para que os cubinhos se separem das
paredes de seus compartimentos: pois sim! é um bloco compacto, mesmo se
viro a fôrma eles não caem, meto-a debaixo da torneira da pia, abro a água
quente, o jato crepita em cima da chapa incrustada de geada, meus dedos, de
brancos ficam vermelhos. Molhei um dos punhos da camisa, isso é muito
desagradável, se há uma coisa que detesto é sentir em volta do pulso o pano
molhado, grudado e disforme.
Enquanto isso, ponha um disco, já estou chegando com o gelo, você está me
ouvindo? Não me ouve até que eu feche a torneira, há sempre alguma coisa que
impede de nos ouvirmos e vermos. Mesmo naquele corredor, ela falava através
dos cabelos que cobriam a metade de seu rosto, falava na borda do copo e eu