Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

ouvia seus dentes rindo no vidro, no gelo, repetindo: gla-ci-a-ção?, como se de
todo o discurso que eu lhe fizera só essa palavra tivesse chegado, eu também
estava com os cabelos caindo em cima dos olhos e falava entre os cubos de gelo
que derretiam muito devagar.
Bato a beira da fôrma na beira da pia, solta-se só um cubinho, cai fora da pia,
vai fazer uma poça no chão, preciso pegá-lo, foi parar debaixo do bufê, tenho de
me ajoelhar, esticar a mão lá embaixo, ele escorrega entre meus dedos, pronto,
agarrei-o, jogo-o na pia, recomeço a passar debaixo da torneira a fôrma virada.
Fui eu que falei com ela da grande glaciação que está prestes a cobrir a terra
de novo, toda a história humana se passou num intervalo entre duas glaciações,
e que agora está acabando, os raios gelados do sol mal conseguem atingir a
crosta terrestre brilhante de geada, os grãos do malte acumulam a força solar
antes que ela se disperse, e fazem com que ela volte a fluir na fermentação do
álcool, no fundo do copo o sol ainda trava a sua guerra contra os cubos de gelo,
no horizonte curvo do maelstrom rolam os icebergs.
De repente três ou quatro cubos de gelo se soltam e caem na pia, antes de
eu ter tempo de virar a fôrma para cima todos já desabaram tamborilando no
zinco. Pesco-os dentro da pia para pô-los no balde, agora já não distingo o
cubinho que se sujou ao cair no chão, para recuperar todos eles é melhor lavá-los
um pouco, um por um, com água quente, não, com a fria, já estão derretendo,
no fundo do balde forma-se um laguinho nevado.
À deriva do mar Ártico os icebergs formam uma renda branca pela Corrente
do Golfo, ultrapassam-no, avançam para os trópicos como um bando de cisnes
gigantes, obstruem a entrada dos portos, sobem pelos estuários dos rios, altos
como arranha-céus batendo contra as paredes de vidro. O silêncio da noite
boreal é percorrido pelo ronco das rachaduras que se abrem engolindo
metrópoles inteiras, depois por um sussurro de avalanches que se atenuam, se
extinguem, como que acolchoadas.
Vá saber o que ela está fazendo lá do outro lado, tão silenciosa, não dá sinal
de vida, podia muito bem vir me dar uma mão, bendita moça, nem sequer lhe
veio ao espírito me perguntar: quer que eu ajude? Felizmente, terminei, agora
enxugo as mãos com esse pano de prato, mas não gostaria de ficar com cheiro
de pano de prato, é melhor lavar as mãos de novo, agora, onde me enxugo? O
problema é se a energia solar acumulada na crosta terrestre será suficiente para
manter o calor dos corpos durante a próxima era glacial, o calor solar do álcool,
do iglu, da esposa esquimó.
Pronto, agora volto para perto dela e poderemos beber sossegados nosso
uísque. Sabe o que ela estava fazendo ali, caladinha? Tirou suas roupas, está nua
em cima do sofá de couro. Gostaria de me aproximar dela, mas a sala foi
invadida pelos cubos de gelo: cristais de um branco ofuscante se amontoaram
sobre o tapete, sobre os móveis; estalactites translúcidas caem do teto, grudam-

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