que encontrei, para me refugiar.
Mas no fundo do corredor, na meia-luz, de pé, com as mãos apoiadas no
cabo do guarda-chuva fininho, estava parado o homem de olhos claros, e parecia
me esperar.
Primeiro, tive um ímpeto de estupor, depois arrisquei algo como um sorriso e
apontei para o sapato desamarrado, para preveni-lo.
O desconhecido assentiu com aquele seu ar de melancólica compreensão.
— Pois é — disse —, os dois estão desamarrados.
No corredor, pelo menos, eu podia amarrar os sapatos com mais calma, e
mais comodidade, apoiando um pé num degrau. Mesmo se atrás, alto, de pé,
estava o homem de olhos claros que me observava e não perdia um movimento
de meus dedos, e eu sentia o seu olhar no meio deles, a me confundir. Mas, cá
entre nós, agora eu já não sofria; até assobiava, refazendo pela enésima vez
aqueles nós malditos, e dessa vez ia ser para valer, de tão desenvolto que eu
estava.
Bastaria que o homem tivesse ficado calado; que não tivesse começado,
primeiro, a tossir, meio inseguro, e depois a dizer de supetão, decidido:
— Desculpe, mas o senhor ainda não aprendeu a dar laço nos sapatos.
Virei meu rosto enrubescido para ele, fiquei curvado. Passei a língua entre os
lábios.
— Sabe — disse —, eu, em matéria de dar nós, sou uma negação. O senhor
nem acredita. Desde criança, jamais quis aprender. Os sapatos, eu tiro e ponho
sem desamarrar, com a calçadeira. Para os nós sou uma negação, me atrapalho.
Ninguém acredita.
Aí o desconhecido disse uma coisa estranha, a última coisa que se esperaria
que dissesse.
— Então — disse —, com os seus filhos, se tiver, como fará para ensiná-los a
amarrar os sapatos?
Mas o mais estranho foi que refleti um pouco sobre isso e depois respondi,
quase como se a questão já tivesse me sido apresentada outra vez, eu com os
meus botões, e como se eu a tivesse resolvido e guardado a resposta, esperando
que mais cedo ou mais tarde alguém me faria a tal pergunta.
— Meus filhos — disse — aprenderão com os outros como é que se amarra
um sapato.
O desconhecido retrucou, cada vez mais absurdo:
— E se por exemplo chegasse o dilúvio universal e toda a humanidade
perecesse e o senhor fosse o homem eleito, o senhor e seus filhos, para continuar
a humanidade. Como faria, já pensou nisso algum dia? Como faria para ensiná-
los a dar um nó? Porque do contrário, depois, sabe-se lá quantos séculos a
humanidade teria de passar até conseguir dar um nó, reinventá-lo!
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1