à lembrança é o número de latrinas que tinha, latrinas de todos os tipos: nos
banheiros de ladrilhos brancos brilhando, em cubículos semiescuros, latrinas à
turca, velhos water-closets com o vaso ornamentado de frisos azuis.
Assim pensando eu andava pela cidade, farejando o vento. E eis que encontro
uma moça que conheço: Ada Ida.
— Estou feliz: o vento! — digo-lhe.
— O vento me dá nos nervos — responde. — Acompanhe-me um pouco: até
ali.
Ada Ida é uma dessas moças que encontram você e logo começam a falar da
própria vida, dos pensamentos, mesmo se mal o conhecem: moças sem segredos
para os outros, a não ser os que também são segredos para elas; e que também
encontram palavras para esses segredos, palavras de todos os dias, brotadas sem
esforço, como se seus pensamentos já nascessem completamente tecidos de
palavras.
— O vento me dá nos nervos — diz. — Eu me fecho em casa e tiro os
sapatos e ando descalça pelos aposentos. Depois pego uma garrafa de uísque
que ganhei de um americano e bebo. Jamais consegui me embriagar sozinha. A
certa altura começo a chorar e paro. Faz uma semana que estou circulando e
não consigo encontrar trabalho.
Não sei como ela faz, Ada Ida, como fazem todos os outros, mulheres e
homens, que conseguem ter intimidade com todos, que encontram algo a dizer
a todos, que entram nos assuntos dos outros e fazem os outros entrarem nos
seus assuntos. Digo: — Eu vivo num quarto no quinto andar com bondes de noite
iguais a corujas. A latrina é verde de mofo, com musgos e estalactites, e uma
névoa de inverno como acima dos pântanos. Acho que o temperamento das
pessoas também depende do banheiro em que são obrigadas a se trancar
diariamente. A gente sai do trabalho e volta para casa e encontra o banheiro
verde de mofo, pantanoso: então quebra um prato de ervilhas no corredor e se
fecha no quarto gritando.
O que eu disse não é claro, não é exatamente o que eu tinha pensado, com
certeza Ada Ida não entenderá, mas comigo é assim, para os meus pensamentos
se transformarem em palavras proferidas, eles têm de atravessar um interstício
vazio, de onde saem falseados.
— Eu limpo o banheiro diariamente, mais que toda a casa — diz ela —, lavo
o chão, deixo tudo brilhando. Na janelinha ponho toda semana uma cortininha,
limpa, branca e bordada, e todo ano mando pintar as paredes. Acho que, se um
dia tivesse de parar de fazer essa limpeza, seria um mau sinal, e eu me
abandonaria, cada vez mais baixo, até o desespero. É um banheirinho escuro, o
da minha casa, mas o mantenho como se fosse uma igreja. Sabe-se lá como será
o do dono da Fiat. Venha, me acompanhe mais um pouco, até o bonde.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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