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ODalaiLamamedita
nosseusaposentos
privados.Eledescreve
estapráticadiáriacomo
“sobretudomeditação
analítica”,concentrando
o espíritodemaneira
a afastá-lodeemoções
nocivascomoo medo,
a irae a inveja,de
formaa “aumentaro
amore a bondade”.
Ele desce um caminho íngreme, na direcção
do murmúrio suave da multidão. Quando avista
a fila de pessoas, detém-se e acena, revelando um
sorriso caloroso, e depois sobe cuidadosamente
vários degraus até à ampla cadeira de madeira
onde se senta, para cumprimentá-las uma a uma.
Um bebé com deficiência é levado, escadas acima,
pela mãe, que irrompe em lágrimas. Uma mulher
de meia-idade pede-lhe uma bênção de cura, so-
prando-lhe para dentro da boca. Ele acede. Um
idoso que caminha balouçando-se nas canadia-
nas fala-lhe das suas dores físicas.
“Todos nascemos para morrer”, responde o
Dalai Lama.
ALGUNS TIBETANOS preocupam-se com o que acon-
tecerá ao seu povo quando o Dalai Lama morrer. Há
mais de cem mil pessoas que vivem fora do Tibete
e cerca de seis milhões de residentes que ainda se
encontram no território. Num pequeno jantar
semanal em Dharmsala, um grupo de poetas, inves-
tigadores, artistas, políticos tibetanos e activistas
discutem abertamente essa eventualidade.
Sentado por baixo de cartazes de Gandhi e Mar-
tin Luther King, Tenzin Tsundue é o primeiro a fa-
lar. “Nós somos os seus filhos... Nenhuma comu-
nidade possui um líder como ele”, diz. “Mas este
é um combate pela liberdade... Temos de fazer
mais. Chegou o momento de sermos nós a agir.”
Mesmo assim, não têm a certeza do que fazer
e discutem se a abordagem da Via Intermédia do
Dalai Lama será suficiente. Um político levanta a
seguinte questão: será que, depois de tudo o que
a China fez ao Tibete, é sequer possível que o país
adira à postura de não-violência defendida pelo
Dalai Lama?
No Mosteiro de Namgyal, o mosteiro pessoal do
Dalai Lama, o líder religioso Thamthog Rinpoche
exprime-se com solenidade, ao ponderar a ques-
tão. “Quando Sua Santidade falecer, vai ser uma
catástrofe. Não há líderes como ele.”
NO MOSTEIRO, o som dos monges entoando ora-
ções budistas eleva-se no céu, momentos antes da
alvorada. As vozes pertencem a cerca de cem rapa-
zes, alguns dos quais com 6 anos, debruçados sobre
livros numa sala de aula com enormes janelas.
Quando os primeiros raios de luz se erguem
atrás das montanhas e entram na sala de aula, a
luz quente e amarela desliza pelas paredes, ilu-
minando um retrato do Dalai Lama com um me-
tro de comprimento, banhando depois os rostos
jovens. A memorização destas antigas orações,
uma das quais pode demorar um dia inteiro a
recitar, “estabiliza a mente, fortalece a memó-
ria e aumenta a consciência”, diz o mestre. Eles
rezam pela compaixão, cantando em uníssono:
“Possa eu atingir o estado de Buda para bem de
todos os seres sencientes.”
Quando lhe pergunto o que pensa sobre abraçar
a humanidade em todos os lugares, em justaposi-
ção ao azedume que divide o mundo, o Dalai Lama
faz uma pausa. “Acho que as pessoas que ocupam
o poder, por vezes, ainda pensam como no sécu-
lo XX e, sempre que encontram dificuldades, pen-
sam como hão-de resolvê-las pela força.” Após
quase oito décadas como Dalai Lama, ele afirma
que os seres humanos estão a “amadurecer”.
Pressente que “hoje existe um mundo mais
esperançoso, em termos gerais”, mas sugere que
comecemos a compreender que todos fazemos
parte de “um todo de sete mil milhões de seres
humanos” no mundo. Afirma que “dar um contri-
buto, ainda que pequeno” para a melhoria dos se-
res humanos o fez “sentir-se muito, muito feliz”.
Quando lhe pergunto pelos seus contributos,
ele olha-me surpreendido e censura-me: “É er-
rado” pensarmos na nossa própria reputação.
Qualquer indivíduo deve preocupar-se exclusiva-
mente em contribuir durante o máximo de tem-
po possível, afirma. “Todos os dias são as minhas
orações, a minha determinação... o meu corpo, o
meu discurso, o meu espírito dedicado ao bem-
-estar de todos os seres sencientes... até ao meu
último sopro. E mais além. Enquanto o espaço
existir, enquanto o sofrimento dos seres sencien-
tes perdurar, eu estarei ali, para servir. Essa é a
minha principal oração.”
Depois, levanta-se da cadeira. Há mais pessoas
à espera das suas audiências. Os monges, sussur-
rando, olham para o relógio, preocupados. No ex-
terior, as montanhas desapareceram, escondidas
por uma pesada neblina branca. O Dalai Lama
levanta-se, ainda com alegria, mas caminhando
um pouco mais devagar. Começou a chover. Um
automóvel aguarda-o para o conduzir de volta
aos seus aposentos privados, no topo da colina.
Despede-se, acenando. É hora de descansar, an-
tes de voltar a levantar-se para dissipar o sofri-
mento da humanidade. j