National Geographic - Portugal - Edição 222 (2019-09)

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68 NATIONALGEOGRAPHIC


ABERTURA DA FRONTEIRA
pode ter acontecido numa
manhã calma de Agosto de
2007, quando dois submer-
síveis russos desceram ao
longo de quatro mil metros
até ao fundo do oceano gla-
cial Árctico e cravaram
umabandeiradetitânio no Pólo Norte. Imagens
difundidas, mostrando o pavilhão tricolor russo
sobre o leito marinho, rapidamente provocaram
manifestações de condenação no Ocidente.
Um escasso mês mais tarde, os cientistas que mo-
nitorizam o oceano por satélite anunciaram que o
gelo marinho encolhera para a menor extensão al-
guma vez observada. “Foi a maior perda de gelo no
Árctico da história humana e não foi prevista pelos
modelos climáticos mais agressivos”, comentou Jo-
nathan Markowitz, da Universidade do Sul da Cali-
fórnia. “Este choque levou o mundo a aperceber-se
de que o gelo estava a desaparecer rapidamente e
alguns países decidiram começar a mexer-se.”
Hoje, a Rússia tornou-se, segundo a maioria dos
critérios, a potência dominante no Árctico. Possui
a maior frota do mundo capaz de operar duran-
te todo o ano em águas setentrionais extremas e
mantém dezenas de bases militares acima do cír-
culo polar árctico. Os EUA mantêm uma base no
Árctico e um campo de aviação, em terrenos em-
prestados na região setentrional da Gronelândia.
A Rússia posicionou novas tropas no Norte, au-
mentou a actividade dos seus submarinos e fez re-
gressar aviões de guerra aos céus do Árctico, onde
atravessam actualmente o espaço aéreo da NATO
de forma rotineira. No entanto, segundo Jona-
than Markowitz e outros investigadores, a activi-
dade russa no Norte reflecte mais os seus planos
internos do que eventuais ambições globais.
Dois milhões de russos habitam o território do
país no Árctico, no qual existem várias grandes ci-
dades, como Murmansk e Norilsk. As populações
árcticas do Canadá e dos EUA somadas represen-
tam menos de um quarto desse valor. Os russos
dependem da extracção de recursos. Consideram
o Árctico “uma base estratégica de recursos no fu-
turo”, acrescentou o especialista.
Segundo Yun Sun, membro sénior do Centro
Stimson, em Washington, a expansão chinesa no
Árctico segue uma estratégia semelhante, centra-
da nos recursos e não no território. Além dos in-
vestimentos no petróleo e gás russos, afirmou Yun
Sun, a China está interessada em aceder às novas
rotas marítimas que permitem reduzir os tempos


de viagem entre os portos asiáticos e os merca-
dos europeus, redução essa que por vezes chega
a duas semanas.
Em Janeiro passado, o governo chinês publicou
um livro branco onde definiu em traços largos as
suas intenções setentrionais. Nesse livro, a China
descreve-se a si própria como “estado quase-árc-
tico” que espera colaborar com outros países na
construçãodeuma“Rota da Seda Polar” dedicada
aocomércioe à investigação.

URANTE DÉCADAS, os EUA
e o Canadá nunca se preo-
cuparam em desenvolver
os seus territórios seten-
trionais, nem em investir
nos seus habitantes. Esta
atitude é frequentemente
insultuosa, senão mesmo
dolorosa,paraospovos indígenas do Árctico, em
especial porque essas promessas de oportunidades
quase sempre os excluíram. Joe Savikataaq, primei-
ro-ministro do Território Nunavut do Canadá, rei-
terou as palavras de Marvin Atqittuq, quando este
me disse que os inuit tinham sido postos à margem
dos planos para o Árctico. “Sentimo-nos felizes e
orgulhosos por fazer parte do Canadá, mas somos
o irmão pobre que só recebe restos”, disse.
Joe Savikataaq elaborou uma lista das cate-
gorias nas quais as comunidades do Norte estão
atrasadas em relação às comunidades do Sul:
cuidados de saúde, criação de empregos, tecno-
logia, obtenção de graus universitários. De segui-
da, apresentou uma lista dos poucos critérios em
que o Norte é líder: perda do gelo, custo de vida,
ritmo de aquecimento, taxa de suicídio. Seja lá o
que vier desta vez, afirmou, vai atingir-nos em pri-
meiro lugar. “Nós somos tão pequenos e os nossos
recursos são tão limitados que somos meros es-
pectadores”, disse. “Tudo o que podemos fazer é
adaptarmo-nos o melhor possível.”
Decorrida cerca de uma semana após o início
da missão dos vigilantes, o tempo finalmente
melhorou e Marvin Atqittuq decidiu que chegara
altura de... ir dar uns tiros aos russos. Ele e o sar-
gento Dean Lushman, antigo militar de infantaria
canadiano que se tornara instrutor do programa
dos vigilantes, foram buscar alvos de papel acas-
tanhado, espetaram-nos em paus e plantaram
meia dúzia deles nas imediações do acampamen-
to. Em cada um via-se a imagem de um soldado
a investir, de boca aberta num grito, com a arma
equipada com baioneta.

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