National Geographic - Portugal - Edição 222 (2019-09)

(Antfer) #1
ANOVAGUERRAFRIA 69

Os alvos tinham sido concebidos para as forças
da NATO durante a guerra fria. Erguendo-se, lado
a lado, no sopé de uma pequena colina, eram os
objectos mais altos num raio de muitos quilóme-
tros, destacando-se de tal forma contra a neve que
parecia impossível não acertar neles.
Marvin Atqittuq marcou uma linha na neve, a
100 metros de distância, e dispôs os seus soldados
ao longo dela. Deu a cada um deles um punhado
de balas e os vigilantes
ajoelharam-se sobre
peles de foca ou parkas
e começaram a dispa-
rar as suas espingar-
das velhas e desajeita-
das. Perguntei a Dean
Lushman, participante
em várias comissões
de combate no Afeganistão, se achava que ocorre-
ria uma nova guerra fria no Norte. Ele riu-se.
“Olha para isto”, disse. Abriu os braços, abran-
gendo com eles a tundra, os vigilantes e os russos
de papel. “O que viria alguém aqui fazer? Tan-
ques a andar de um lado para o outro, soldados,
aviões?” Voltou-se para Marvin Atqittuq. “O que
achas? Estás pronto para combater os russos?” Le-
vantando os olhos do bloco de notas, num sorriso
irónico, Marvin retorquiu: “Daria muito trabalho.”
“Em termos militares, não faz sentido, não é?”,
continuou Dean Lushman. “Já viste quanto tem-
po demorámos só para fazer estas actividades
básicas? Já viste como os objectos estão sempre a
avariar e quanto trabalho nos dá só para sobrevi-
ver? Não virá para aqui nenhuma guerra.”
Os Canadian Rangers foram criados durante a
primeira guerra fria, quando os responsáveis pelo
planeamento militar, preocupados com os mís-
seis balísticos e a corrida espacial, olharam para
o Árctico e consideraram-no uma porta das tra-
seiras vulnerável. Contudo, os próprios vigilantes
nunca acreditaram que iriam travar invasores.
Paul Ikuallaq, um dos vigilantes que integra-
ram o pelotão dos praticantes de tiro ao alvo, ofe-
receu-se como voluntário há cerca de 30 anos,
tendo ajudado a dar formação às tropas da NATO
durante a era soviética. “Foi catastrófico”, contou.
Homem volumoso e de gargalhada sonora, tam-
bém não acreditava que viesse a acontecer uma
guerra no Norte. Os soldados kabloona (brancos)
que ele instruíra ao longo dos anos voltaram para
casa com os dedos das mãos e dos pés dormentes
devido ao gelo: uma recordação do horror que
uma guerra travada no frio desencadearia.


Embora nenhum dos funcionários da NATO
com quem falei acreditasse que a Rússia pudesse
desencadear uma guerra no Norte, vários sugeri-
ram que um conflito poderia eclodir algures no Sul
e alargar-se ao Árctico. Alguns referiram a forma
violenta como a Rússia se apossou da Crimeia e as
investidas da China no mar da China Meridional.
Fora das forças armadas, porém, ainda há mui-
tos que têm esperança num Árctico diferente, me-

nos parecido com um campo de batalha da guerra
fria e mais parecido com a Antárctida ou com o
espaço. Nessas regiões, os acordos internacionais
e a distância atenuam os combates políticos.
“Os países com dificuldades noutros domínios
encontram-se numa situação em que são obriga-
dos a cooperar em regiões frias, perigosas e dispen-
diosas”,resumiuMichael Byers, professor na Uni-
versidadedaColúmbia Britânica.

A NOSSA ÚLTIMA noite no
acampamento, um
pequeno grupo de jovens
inuit surgiu empoleirado
em motos-de-neve. Um
dos recém-chegados
irrompeu pela multidão,
aos tropeções. Cheio de
aflição,dissequehavia um jovem a bordo do trenó
que ele trazia a reboque. O passageiro desaparecera.
Caíra provavelmente no meio da tundra. Ali estava
o tipo de missão de busca-e-salvamento para o qual
os vigilantes tinham treinado. Alguns vigilantes
equiparam-se e partiram de moto.
Vimos as luzes dos faróis a afastarem-se na
escuridão. Enfraqueceram e, por fim, desvane-
ceram-se. A maioria dos presentes regressou às
tendas, aguardando e tentando escutar qualquer
ruído que indiciasse o regresso das máquinas. Fi-
zemos chá. Marvin parecia preocupado, mas não
em excesso: o inuit desaparecido fora criado no
Árctico e sabia o que fazer caso se encontrasse so-
zinho no gelo. Pensei nos ursos que avistara dias
antes e tentei imaginar o que faria o jovem no meio
da escuridão. Talvez estivesse a entoar cânticos. j

A RÚSSIA TORNOU-SE A POTÊNCIA DOMINANTE


NO ÁRCTICO, COM A MAIOR FROTA DE


QUEBRA-GELOS E DEZENAS DE BASES MILITARES.


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