20 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
e ressurreição
FKA Twig
Em 2014, com o
álbum de estreia,
a inglesa FKA
Twigs deÄniu
novas e
inventivas
coordenadas
para a pop.
Regressa agora,
revigorada,
depois de más
experiências,
sendo Magdalene.
Vítor
Belanciano
P
ecadora, prostituta, impura,
santa, fiel ou discípula mais
estimada de Jesus. A vida e
história do misterioso sím-
bolo bíblico que é Maria Ma-
dalena continua a seduzir as
mais diversas personalidades. Por
exemplo, Tahliah Barnett, ou seja,
FKA Twigs, 31 anos, que no tema
Mary Magdalene articula sagrado e
profano, explorando a fonte do po-
der feminino, cantando “I’m fever for
the fire / True as Mary Magdalene /
Creature of desire.”
Mas nem só da complexificação
dos papéis femininos trata o álbum
Magdalene, o seu segundo, depois de
em 2014 se ter estreado com um dos
mais estimulantes registos da última
meia dúzia de anos, LP1. A gestão da
fama, as relações íntimas, a auto-es-
tima e as transformações emocionais
e físicas perante a doença são outros
elementos presentes num disco que
globalmente soa mais introspectivo
que o anterior, com uma sonoridade
atmosférica, mas igualmente sedu-
tora e alienígena, transportando
tanto vulnerabilidade como vigor,
com ritmos em câmara-lenta, am-
Crucificação
bientes etéreos, silêncios e uma hi-
persensibilidade digital.
É uma obra de descoberta interior
para alguém que observou o rápido
ritmo da mudança e que, em 2014,
se descrevia em conversa connosco
como uma solitária. Dir-se-ia que a
cantora, produtora, bailarina e rea-
lizadora britânica, mais do que bus-
car inspiração ou fé na figura reli-
giosa de Maria Madalena, se identifi-
cou com a mesma, em particular
depois do período difícil que se se-
guiu à edição do álbum de estreia e
dos muitos espectáculos cenica-
mente e musicalmente estimulantes
que deu pelo mundo — esteve no Pri-
mavera Sound do Porto em 2015.
Parecia correr tudo bem, quando
começou a morar nas revistas de
mexericos, por via de uma relação
amorosa com o actor Robert Patti-
son. Ao que parece muitos admira-
dores do britânico não terão apro-
vado a ligação e parte considerável
do tribunal popular das redes sociais
crucificou-a com observações racis-
tas e sexistas pelo meio. Já depois da
ruptura amorosa foram-lhe diagnos-
ticados seis tumores benignos no
útero, tendo sido operada para lhos
serem retirados e seguiu-se uma fase
árdua de saúde física e mental. Não
é por acaso que na capa (da autoria
do artista visual Matthew Stone)
surge desfigurada. Era assim que se
via e sentia. Como por vezes acon-
tece a forma que encontrou para
transcender a situação foi acabar por
integrá-la na criação.
Talvez por isso este pareça um
disco mais recolhido. Mas o seu som,
e a voz expressiva, são as de sempre.
Descobrimo-la em 2012 com uma
série de vídeos, realizados pela pró-
pria, que ilustravam as canções do
primeiro EP1, bricolagens pop futu-
ristas que mostravam um novo estilo
radical e intimo, que iria ter desen-
volvimento num segundo registo
(EP2), co-produzido por Arca, com
vídeos dela e de Jesse Kanda, a que
se seguiria o álbum. Olhando para
trás é impossível não vislumbrar que
ela, na companhia de James Blake ou
dos The xx e, de forma menos reco-
nhecível, de Burial, ergueu uma nova
realidade, difícil de definir, entre a
rescrição soul, uma realidade pós-
hip-hop ou a delineação de uma pop