A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

nas serras. Rural tímido, como um dia lhe chamaram, toda a vida fora um
homem de feitio reservado, pouco dado a grandes confidências e desabafos.
Pendia para a mãe, menos para o pai.
Andava curvado, de pés para dentro, enfezado e tímido.
Obediente e atinado nos verdes anos, exigira o mesmo ao País em plena
maturidade do Estado Novo. Lamentara-se uma vez de ter nascido distante do
mar, mas permanecera eternamente cativo de Santa Comba.
Nos últimos anos de existência, afastara-se do torrão natal, espaçando cada
vez mais as deslocações. Havia razões de saúde. Mas ele próprio tornara-se
mortiço, acabrunhado, quase sombra numa terra onde a maioria das pessoas
que conhecia haviam partido antes dele, com exceção das irmãs e do pedreiro
Ilídio. Viver tornara-se um peso difícil de suportar, arrastado na segunda
metade da década de 1960 como as correntes de um condenado.
Em Santa Comba, tudo lhe parecia já remoto, sem ressonância, nem
comunhão. Impessoal, misterioso, desconhecido. Mesmo assim, programara
regressar, com tempo e saúde, ao remanso da velha casa de aldeia, no Vimieiro.
De preferência, entregue a leituras adiadas e aos lentos afazeres agrícolas e de
jardinagem, entretido nos quintais, em volta das flores, vendo os figos
amadurecer, cuidando das vinhas, ao som da água que acariciava as pedras na
rega dos lameiros.
A oportunidade nunca se impôs à ditadura diária das responsabilidades, dos
tédios e das inércias de Estado. «Eu não tenho ninguém e depois de mim tudo
se dispersará e perderá significado e valor», escrevera, nessa época de
contrariedades e abatimentos, a uma admiradora.
Em 1965, vendera tábuas de eucalipto e uma porção considerável de madeira
por meia dúzia de contos.
Despachara também cerejeira e cedro por metade desse valor.
Estava em apertos financeiros, não sabia o que fazer às terras.
Não podia contar com Marta, a irmã octogenária que ia perdendo a réstia do
seu limitado tino administrativo.
Morrera também o sacerdote Carneiro de Mesquita, amigo dos tempos do
Centro Académico de Democracia-Cristã, em Coimbra, a cujos conselhos,
conhecimentos e até empréstimos monetários recorrera para decidir dos
destinos destes pequenos negócios.
Salazar caminhava para o fim, solitário, desconfortável e deslocado dos
novos tempos. Adiará indefinidamente o testamento, onde planeara deixar
«alguma coisa» à governanta Maria de Jesus.

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