lamentos, alegrias e devoções da nação, a caixa postal da lamúria, da cunha e
do elogio fácil. Os subscritos eram depositados em São Bento, às centenas.
Salazar poderia, por exemplo, receber cartas de Marques Gastão, jornalista
do Diário da Manhã, a queixar-se de que o jornal apenas publicara oito
reportagens de uma série de 23 por si efetuadas nos Estados Unidos e no
Canadá, caso para o qual pedia a interferência do ditador. A situação nem
sequer era um problema de censura, parecia mesmo má vontade, pois o autor
esclarecera que dera o seu melhor para engrandecer a pátria e o excelentíssimo
Presidente do Conselho durante as suas viagens ao exterior. Era, de resto, uma
postura servil que Salazar apreciava desde longa data: «Eu não temo o grande
jornalista desde que seja português e o demonstre. O que temo são os pequenos
jornalistas que se desnacionalizam sem darem por isso, talvez por não estarem
suficientemente armados para se defenderem de sedutoras e fáceis teorias»,
dissera uma vez, para justificar a censura.
Chegava também correspondência do seu médico pessoal com pedidos sem
falsas modéstias: «Tenho a honra de solicitar ao Governo que me mantenha na
direção do serviço de cardiologia durante cinco anos, a partir do próximo dia 7
(...)», escrevera, a dada altura, Eduardo Coelho.
As cartas sobre as negociações do financiamento de um consórcio norte-
americano à segunda fase da construção da Ponte Salazar – 500 milhões de
dólares a 5,5% de juros durante 30 anos – misturavam-se, por exemplo, com
missivas de uma tal senhora Constança, que ouvira vozes quando estava em
oração. «Sou Jesus, o Salvador do Mundo», escutara a velhota, apressando-se a
transmitir por escrito a Salazar a mensagem recebida: «Tem de ir comunicar ao
Presidente do Concelho que eu venho pedir que faça a consagração ao Coração
de Maria. Se não ouvirem o meu aviso de misericórdia, a Rússia em breve virá
tomar Portugal e serão caimados vivos e Portugal ficará em cinzas.»
Quem não tinha coragem de escrever a Salazar, mandava cartas a Maria,
esperando que a governanta usasse a sua proximidade para resolver problemas.
Durante décadas, ela tornara-se, de facto, a fiel depositária de mensagens que
eram, por si só, o retrato da nação e do regime.
Entre a sua correspondência, podem ler-se histórias de miséria relatadas
desde o Portugal profundo, onde a falta de trabalho e a pobreza arrastavam
famílias inteiras para o desespero.
Havia também pedidos de mulheres «confiando na sua valiosa proteção» e de
homens desejando ser colocados num lugar «a que V. Ex.a tenha mais
facilidade» de aceder.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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