O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

costas, os putos pretos, o grande e o pequeno, deitavam faíscas dos olhos
enquanto o atiçavam contra o soldado. O ruído de fundo da manifestação, a
massa humana, impressionava. Uma equipa de televisão estrangeira começou
a filmar e a multidão engoliu o operador de câmara e a sua repórter loira,
cercando-os, na ânsia de transmitir uma indignação, uma angústia, uma
impotência. A confusão adensava-se. O discernimento dissipava-se no denso
vapor envenenado que pairava acima do asfalto amolecido. As pessoas
perdiam-se na inconsciência colectiva. Gritavam, gritavam muito,
violentamente, contra a violência e contra os colonialistas que não as
protegiam da guerra trazida até à sua porta por muitos daqueles que hoje
gritavam a seu lado. Mas estavam furiosas e não se apercebiam da
incoerência. Os próprios soldados negros que hoje se manifestavam, uma vez
desmobilizados do exército, haveriam de ir bater à porta dos movimentos de
libertação e juntar-se a estes para continuarem a fazer a guerra. Isto vai
explodir não tarda
, pensou Patrício. O cabelo ruivo encaracolado soltou-se do
colega. Uma idosa sufocada desfaleceu. Caiu como um parafuso no asfalto
movediço. As pessoas viraram-se para vê-la desfazer-se em pó dentro de um
vestido de luto. O estudante aproveitou a distracção e correu desembestado
para o soldado, atirou-se a ele, cravou as duas mãos na espingarda, tentou
roubar-lhe a arma. Os putos pretos precipitaram-se para o ajudar, investiram
contra o soldado. Patrício recuou dois passos cautelosos, a pensar pronto,
agora é que é
. O outro soldado levantou a sua G-3 sem hesitar. Seiscentas
balas por minuto podia disparar aquela arma, dez balas num segundo, num
piscar de olhos. Patrício teve uma reacção automática, um reflexo de
sobrevivência, protegeu a cabeça com as mãos e rodou o corpo ao mesmo
tempo que se agachava e se ouvia a gritar, nããão!!!

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