- Amanhã à mesma hora
a atropelar as sílabas, metendo-as umas nas outras, devorando duas ou três com a
língua a atrapalhar-me, fica tão grande às vezes e outras nem a sinto, repeti - Amanhã à mesma hora
mas um - Amanhã à mesma hora
ainda mais confuso, a que faltava uma parte essencial que não descobria qual fosse,
as sobrancelhas da minha mulher primeiro a estranharem e a seguir essa forma que
tomam quando o resto da cara principia a sorrir, quer dizer não chega a sorrir, principia
apenas, qualquer coisa nas bochechas, qualquer coisa no queixo que fazem parte do
sorriso, não o sorriso completo, uns fragmentos apenas, um aceno da mão das chaves
mais aviso que aceno e por que motivo um aviso, qual a razão de me avisares diz-me - Amanhã à mesma hora
a frase, na minha cabeça, a ecoar sem fim - Amanhã à mesma hora amanhã à mesma hora amanhã à mesma hora
e a porta a fechar-se com um - Com licença
que me aconselhava a recuar o pé a fim de não ficar coxo para o resto da vida por
faltarem os dedos, atravessei para o passeio oposto e uma lâmpada a acender-se no
segundo andar enquanto a minha mulher passava pela janela a despir o casaco com um
dos ombros já de fora, assim de longe e de baixo não me pareceu tão bonita, não me
pareceu bonita sequer, lembro-me de ter pensado - Em que carga de trabalhos me estarei a meter?
a minha mãe, se soubesse, a voltar-se na bancada da cozinha, com o escoador de
esparguete, cavalinho, cavalinho, a pingar - O que sabes tu dela?
amanhã à mesma hora praticamente uma promessa de noivado, uma ideia de
casamento que vibrava ao longe, as árvores da rua já quase escuras, daqui a pouco o
vento lento nas folhas, uma espécie de silêncio a anular os ruídos, pessoas à mesa a
jantarem, os primeiros morcegos, eu de regresso ao andar dos meus pais - E agora?
indeciso entre o arrependimento e a curiosidade, adivinhar que vestido traria, se o
cabelo cuidado, se um poucochinho de maquilhagem ou se igual à véspera, de casaco
com um botão a soltar-se e eu sem coragem de apontá-lo - Já viu esse botão quase solto?
porque o botão, sei lá porquê, importantíssimo de súbito eu que não ligava por aí
além a botões, o que me interessavam botões, um dos alferes mandou trazer o guincho
a fim de arrastarmos a camioneta até ao arame farpado, com a metade esquerda da
frente destruída e o banco do condutor, onde ninguém agora, tanta nódoa de sangue, a
quarta mulher sob uma barrica vazia, com um dos olhos fechados e o nariz rasgado até
à outra sobrancelha, para lá de duas pernas direitas, que estranho, nenhuma perna
esquerda e as nádegas - Tenho a certeza que não vou ser capaz
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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