automóvel finalmente a caminho da vila mas infelizmente o porco, mas infelizmente a
faca, o meu pai a repetir
- Dois
a fungar, a grunhir enquanto se escutava ao longe, vindo do norte quase sobre as
árvores, transformando os ramos em pássaros, o aviãozito do correio e da comida
fresca, o sargento que distribuía as senhas para as mulheres de camuflado - Cinco minutos para cada um meninas não se gastem logo no primeiro
a minha mãe para o meu pai na casa da aldeia - Vais deixar o mulato matar-te?
e porque não deixar o mulato matá-lo, porque não matarem-se os dois um ao outro,
no instante em que o meu pai disse - Três
a pistola um estalido porque já nenhuma bala dentro e julgo que em toda a sua vida
o meu pai nunca deu por um estalido tão forte, a prima do meu pai, de regresso do
cemitério com uma vassourinha e uns panos, passou pelo murito da casa da aldeia onde
eu reforçava a buganvília com guitas e arame, o nariz e a boca dela idênticos aos da
minha família, o resto diferente, que estranho os parentes, parecem-se só em alguns
bocados, que me lembre a mulher sem orelhas nem mãos não se assemelhava a mim e
que mentira afirmar que não se assemelhava a mim se mal me recordo dela, o meu pai
levantou-se devagarinho sem carregar no gatilho da gê três, num vagar distraído,
enquanto os furriéis iam reordenado o pelotão para a volta ao arame, o meu pai de pé
a observar o mulato - Dá-me licença que a acompanhe?
de coronha encostada à anca, ainda hoje, às vezes, noto que a mão dele a procurá-
la, a admirar-se de não a encontrar, a dizer a meia voz - Que estupidez
e a sentar-se melhor no sofá comigo a compreender na cara da minha mãe, aliás não
mudada, que ela o entendia, havia noites em que acordava de súbito com a certeza que
ele chorava no quarto, de boca na fronha e a voz da mãe a sacudi-lo, não o braço, a voz
a sacudi-lo - Acorda que já acabou há tantos anos acorda
mas a pistola do mulato deitado no chão continua conforme a atitude dele, não de
medo, não de raiva, nem sequer de ódio, a mesma pergunta sempre - Porquê?
e a mesma ausência de resposta, a mesma incompreensão, o mesmo espanto, a
mesma chuva no cais de Lisboa, as mesmas marchas militares, o mesmo choro, os
mesmos lenços a acenarem sem fim, o motor do barco a afastar-se, a mesma água não
cinzenta nem azul, quase negra, em que se ia afundando, afundando, o segundo
comandante no salão dos oficiais quebrando fósforo após fósforo sem conseguir
acender o cigarro, a minha mãe para o meu pai mas seria o meu pai e se fosse o meu pai
quem era o homem deitado - Estás em Lisboa outra vez já ninguém morre agora