António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

bastava que aceitando, de longe em longe, já não digo um abraço, digo uma festa
discreta, como de amigo apenas, no teu ombro, pedir-te



  • Não me mandes embora
    pedir-te

  • Deixa-me só olhar para ti
    pedir-te

  • Fica comigo
    e em lugar disso Sua Excelência a medo, baixinho

  • Tens a certeza que é o porco que vais matar daqui a nada?
    em bundo, não em português que estranho, onde estou eu afinal e na adega da aldeia
    já cadeiras encostadas à parede, já pessoas à espera lá fora, por exemplo o meu avô,
    com a cadela das perdizes, para o meu pai

  • Sempre quero ver como desde que eu morri te amanhas com o bicho
    com um fundo de ironia, um fundo de troça, um fundo de descrença nele, nunca
    acreditou muito no meu pai pois não, nunca acreditou que sobrevivesse à guerra, pensar
    que o rádio

  • Manda mosca manda mosca
    e o helicóptero a levá-lo, que uma emboscada, que uma bala certeira, na aldeia um
    ventinho nas esquinas, uma ameaça de chuva, eu às cavalitas no preto a caminho não
    sei de onde, vivendas coloniais de quando em quando que o capim devorara, túmulos
    de sobas rodeados de palmeiras, o homem de bruços parecido comigo até na maneira
    de andar, Sua Excelência para mim

  • Quem é o teu pai afinal?
    e eu

  • Não sei
    como juro que não sei para onde me dirigem agora ou como é que isto acaba tanto
    animal degolado tanta pessoa morta e pássaros a voarem ao acaso, e javalis, e uma
    pacaça velha, imóvel, a estudar-nos, e o meu pai à procura da catana na cinta, o porco
    que a esta hora devem estar a meter na furgoneta picando-lhe o lombo com varas e ele
    a torcer-se e a protestar enquanto caminhava, ele a tentar morder as pessoas
    abocanhando o vazio num desespero espantado, raspando o chão com as unhas, Sua
    Excelência para mim

  • Não te faz pena?
    e não sei se me faz pena porque não sei quem vai morrer quando ele morrer, o meu
    pai, eu, outra pessoa qualquer e a seguir a casa da aldeia deserta, ninguém, uns trastes
    que a prima que se ocupa do jazigo roubará, umas fotografias antigas, alguma roupa e
    por fim a chuva a dissolver tudo, não apenas o meu passado aqui, em África com o meu
    pai, instalado num unimogue com ele a caminho de um alvo qualquer

  • Mata mata
    não apenas mulheres e cabras tentando escapar-se a balirem, ele um fósforo e
    gasóleo e cinzas que os mabecos farejam em busca de um osso, um pedaço de carne,
    um pedaço de manga com um pedaço de pele que disputavam ameaçando-se,
    rosnando, mordendo-se, quem me explica se estou em África ou em Portugal senhores,
    quem me explica onde vivo, se perguntasse à minha mãe ela

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