derivado àqueles instrumentos todos da guerra, pistolas, espingardas, canhões, o que
eu gostava que o médico me dissesse
- Está solzinho senhora está solzinho
e o meu marido me levasse ao cais em vez de me trazer para aqui, uma aldeia
abraçada a um cemitério, uma serra cheia de bichos furtivos espiando-se uns aos outros
e a matança do porco mais os seus gritos de homem, todos os anos se sangra um e por
isso não existe quase seja quem for nas ruas exceto meia dúzia de velhos sem sexo,
apenas imobilidade e silêncio, acocorados em calhaus, devorando a pouco e pouco o
que lhes resta de vísceras, trouxe o - Dá-me licença que a acompanhe?
ao andar dos meus pais e as maçãs e as peras a medirem-no da parede consoante o
médico me mede, as maçãs e as peras ombros apenas, o - Dá-me licença que a acompanhe?
na bordinha de uma cadeira, de mãos amarradas uma na outra suponho que ainda
com um dedo meu lá dentro que nem sequer o ajudava, inerte, como os nossos dedos
mudam se outra pessoa os segura, não conheço nada mais tímido, o - Dá-me licença que a acompanhe?
igual aos porcos na adega só que incapaz de lutar, tentando equilibrar-se não na
ponta de um sofá, num verticezinho de si mesmo enquanto o médico o chamava de
parte quando eu do outro lado do biombo e lhe falava aos cochichos, mal a borboleta
na minha lapela apareceu ele mais alto, não para o - Dá-me licença que a acompanhe?
para mim - Cá continuamos na luta
com o meu filho a concordar que sim, ou seja a acenar que sim, ou seja a não acreditar
que sim porque cinco ou seis semanas não chegam a ser uma luta, são uma espera mas
de quê, se eu conseguisse sentir como a minha mãe no hospital que está solzinho, filha,
não está, que está solzinho em lugar desta tarde baça, solzinho, o que há de melhor que
o solzinho enquanto a pedras vão girando em redor de mim, vejo-as passar sem pressa,
quase paradas, ora dentro ora fora do meu corpo, às vezes o - Dá-me licença que a acompanhe?
senta-se na cama a meio da noite embora continue a dormir - Mata mata
e eu acordada porque as pedras continuam, quando entram em mim magoam,
quando saem magoam, quando rodam magoam, mesmo mais leves que a água
magoam, mesmo sem arestas magoam, ocupam-me os órgãos todos e magoam, a água
que bebo mágoa, os caldos que me dão magoam, a roupa que visto mágoa, os sapatos
que calço magoam, daqui a pouco vão conduzir-me à adega onde me instalarão, com
uma almofada nas costas para ficar confortável, numa cadeira de vime, aquela onde
sentavam o pai do - Dá-me licença que a acompanhe?
antes de morrer assisto à agonia do animal ao mesmo tempo que agonizo, pergunto-
me se terei pés porque não os sinto, pernas ainda mas imprecisas, a minha mãe para o - Dá-me licença que a acompanhe?