o joelho numa cômoda, enrolei os sapatos num fio de candeeiro, tropecei na franja do
tapete vítima da habitual conspiração dos objetos que nunca supus que me odiassem
tanto, vingativos vá-se saber porquê e nisto os gritos dos tropas à minha roda lá fora e
cheiro de gasóleo no quimbo
- Queima queima
ao mesmo tempo que Sua Excelência para mim - Até escavacares isto tudo não sossegas pois não?
galinhas a pularem, um dos cabíris que ladrava, vozes, estalos, passos, um motor
ignoro onde que começava e falhava e começava de novo - Ninguém foge queima ninguém foge
sombras, fumo, uma cabra que tombara de joelhos a levantar-se, um farol de súbito
iluminando Sua Excelência só com um pano do Congo à cintura, descalça, os pés pretos
como os meus, outra mulher a tossir, rodei a chave do apartamento e ela - Demoras séculos a fazer seja o que for bolas
saiu adiante de mim claro, uma senhora, sem que ninguém disparasse, apenas uma
velha mirando-nos de cócoras no capacho do vizinho, apesar de estarmos no segundo
piso e de só existirem três no prédio o elevador necessita dos mesmos séculos que eu,
vindo de um sítio misterioso, distantíssimo, arrastando-se exausto, a gemer nos cabos
conforme gemia um homem sem mãos, de braços unidos numa atitude de prece,
conforme gemia a mulher, de joelhos também, que estava comigo no quimbo, conforme
sujeitos verdes - Queima queima
conforme sujeitos verdes - Ninguém foge queima ninguém foge
noite ainda, acima das labaredas, dos tiros, e acima da noite e das copas das árvores
intactas silêncio, não um silêncio transparente, um silêncio baço, fixo, sem vento nem
pessoas que corriam, escorregavam, tornavam a correr e escorregavam de novo só
cotovelos e joelhos, só barriga, só ancas, só dentes a engolirem a terra, só um olho
parado em ninguém, um olho concentrado em si mesmo, só nenhum olho por fim e à
entrada do prédio os três degraus com vasos de cada lado, o meu pai a afastar-se das
labaredas e dos tiros de palma na minha nuca, nuca nuca nuca - Este pertence-me não lhe tocam
para Sua Excelência que como sempre confundia o botão do trinco com o botão da
luz embora o botão do trinco anunciasse Trinco e o botão da luz Luz isto é um par de
apliques com lâmpadas fraquitas porque não somos assim muito ricos no quarteirão,
Sua Excelência como sempre - Bolas
carregando com ódio no outro botão e a porta a girar três centímetros coitada num
susto de dor, tão sensíveis as coisas, as medalhinhas de batismo, os naperons, os lenços,
as calçadeiras, maternais, com pena da gente - Não encraves uma unha tu vê-me lá isso
e nós sumidos nos sapatos a esquecermo-nos delas, escoltei Sua Excelência, um
passo atrás e à esquerda, com as roditas da mala a saltarem-me nos calcanhares,