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Claro que o atraso do meu filho me preocupou tanto mais que ele sabia por eu lhe
ter dito o que aconteceu há quarenta e cinco anos para além de ser talvez a última
matança do porco a que a mãe dele assiste, o médico quer interná-la ao voltarmos da
aldeia a fim de experimentar um tratamento novo que pode dar ou não resultado e o
mais natural é não dar que estas coisas do rim trazem sempre problemas, palavras suas,
mas pelo menos não nos fica o remorso de não havermos tentado, falei nisso com a
minha mulher à mesa do jantar sem que ela tocasse em nada, nem na sopa nem no
peixe, cortei-lhe meia banana às rodelas, peguei no seu garfo, meti-lhe uma rodela na
boca e a minha mulher a passá-la de uma bochecha para a outra sem mastigar enquanto
eu a fingir que mastigava igualmente
- O médico falou num medicamento japonês que até engole calhaus quanto mais
pedrinhas
e ela a olhar-me muito tempo em silêncio, comovida comigo - Não queria estar no teu lugar desculpa obrigada por fingires
poisando a mão na minha julgando que embrulhada num sorriso e eu um sorriso igual
ao dela, onde é que já se viu alegria tão triste, engraçado como existem mil espécies de
lágrimas de modo que para a semana, qual a dúvida, o medicamento japonês principia
o seu trabalho e ela a ganhar força, ânimo e sobretudo cores, a recomeçar a interessar-
se pela casa, a espreitar as notícias da televisão - O que anda pelo mundo meu Deus
e eu concordando logo sem olhar, o que anda pelo mundo de fato,
invejaguerramiséria, um quarto de clínica outra vez onde a única coisa não branca eram
os chocolates que eu comprava visto que proibiam as flores, nenhum de nós os comia e
eles iam-se amontoando, tabletes, bombons, aqueles guarda-chuvas de quando éramos
pequenos com bengalitas de plástico espetadas, percebia que a minha mulher dores
porque os olhos fechados, nenhuma prega na cara, só os olhos fechados e as pálpebras
diferentes das pálpebras que dormem, percebia-se que ela a ver-me sem necessitar de
olhar porque ao fim de tanto tempo juntos não precisamos de espreitadelas, mesmo de
costas sabemos conforme sabemos que esta casa na aldeia do fim de semana em diante
sempre vazia, não acredito que o meu filho ou a minha filha cá voltem, ficam o pó, os
insetos e as telhas a partirem uma a uma como os meus cabelos me deixam levados pelo
pente do vento, restarão os ossos a crescerem sempre como os dos esqueletos nos
museus e os das mulas, repara nas ancas da casa e nos seus ombros agora enormes, nas
mandíbulas que aumentam, monstruosas, ferozes, na horta onde os legumes
apodrecem dilatando-se, na solidão da árvore junto ao muro, se calhar um enterrado
que foi florindo a ganhar ramos lentos, claro que o atraso do meu filho me preocupou
como há quarenta e cinco anos o atraso do meu irmão preocupou o meu pai, não me
pareço com ele, pareço-me com a mãe dele sempre sentada num banquito, de saia
comprida, a fechar-me um rebuçado secreto no punho - Não digas nada garoto é um segredo só nosso