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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2020 Política A
Jussara Soares / BRASÍLIA
Em atrito com o ministro da
Saúde, Luiz Henrique Man-
detta, o presidente Jair Bolso-
naro mandou um recado ao
auxiliar ao dizer que nin-
guém no governo é “indemis-
sível”. A declaração, no entan-
to, soou como uma bravata
para interlocutores do gover-
no. Não há dúvida de que Bol-
sonaro deseja demitir Man-
detta, mas sabe que, ao fazê-
lo, arrisca a própria imagem
diante da popularidade que o
ministro alcançou no enfren-
tamento à pandemia do coro-
navírus. Conquistou o apoio
de líderes do Congresso, do
Judiciário, da oposição e até
mesmo de bolsonaristas.
Pesquisas de opinião divulga-
das ontem apontam que o mi-
nistro tem aprovação maior
que a do presidente. Para alia-
dos dos dois lados que acompa-
nham de perto o cabo de guerra,
Mandetta caminha para ganhar
a mesma musculatura política
que o ministro da Justiça, Sér-
gio Moro, outro auxiliar cuja po-
pularidade gera incômodo e
desconfiança em Bolsonaro.
Durante o agravamento da
crise da covid-19, Mandetta, fi-
liado ao DEM e ex-deputado
por Mato Grosso do Sul por
dois mandatos, ganhou proje-
ção nacional. Diariamente, sur-
ge na entrevista coletiva, trans-
mitida ao vivo por emissoras de
TV, para falar sobre a evolução
da pandemia. Nas últimas sema-
nas, trocou o terno e a gravata
por um colete azul do Sistema
Único de Saúde (SUS). Assim,
se destaca dos demais minis-
tros e se assemelha aos técnicos
da sua pasta, que também usam
trajes com a marca do SUS.
No sábado passado, logo
após ter uma conversa tensa
com o presidente no Alvorada,
o ministro da Saúde surgiu dian-
te das câmeras com colete, as
mangas da camisa dobradas e o
cabelo molhado. Ali, voltou a de-
fender o distanciamento social
e criticou o discurso a favor do
uso da cloroquina em casos do
coronavírus, adotado por Bolso-
naro e apoiadores. “Cloroquina
não é panaceia”, enfatizou.
“Não é só um colete de quem
está vestido para a guerra. Com
o símbolo do SUS no peito, ele
cria uma conexão com pessoas
mais pobres, que não têm um
serviço de saúde particular”,
disse a consultora de imagem
para políticos e empresários Ol-
ga Curado. A especialista, que
teve como clientes os ex-presi-
dentes Lula e Dilma Rousseff e
o próprio Bolsonaro, mencio-
nou a capacidade de Mandetta
de, mesmo ao dar notícias du-
ras, adotar uma linguagem sim-
ples, empática, apontando as so-
luções. Segundo ela, essa habili-
dade é fruto da experiência dele
como ortopedista pediátrico
por mais de 30 anos. “Apesar de
Bolsonaro ficar minimizando o
isolamento, por que as pessoas
não vão para a rua? Porque elas
preferem acreditar no doutor.”
Para a consultora, Mandetta
também se sai bem ao evitar en-
trar na discussão política mes-
mo quando provocado pelo pre-
sidente. Anteontem, após Bol-
sonaro dizer que faltava “humil-
dade” a ele, o ministro respon-
deu que estava trabalhando.
“Eu trabalho. Só lavoro, lavo-
ro”, disse ao Estadão/Broadcast.
Capital político. Na cúpula do
DEM, a percepção de que Man-
detta ganhou tônus político é
nítida, mas os líderes do parti-
do afirmam que é prematuro fa-
zer projeções para 2022. A legen-
da chegou a cogitar a retirada
do apoio ao ministro caso ele
incorporasse a narrativa de Bol-
sonaro na condução da pande-
mia, o que não ocorreu. Pelo
contrário, aliados reconhecem
que o ministro dobrou a aposta
na disputa com o presidente.
Em 2018, o então deputado se
disse decepcionado com a políti-
ca e desistiu da reeleição. Agora,
políticos próximos veem a pos-
sibilidade de ele se projetar para
2022 como um nome ao gover-
no de Mato Grosso do Sul ou ao
Senado, mas afirmam que não é
este o foco agora.
Diante da fritura e desgaste
com o presidente, o ministro,
em conversas reservadas, já não
esconde que desejaria deixar o
governo, mas afirma que não to-
mará a atitude para não arcar
com o ônus de sair em momen-
to de crise. “Médico não aban-
dona paciente”, disse ontem.
No Planalto, a avaliação é de
que, ao desafiar o presidente,
seu superior hierárquico, o mi-
nistro dá munição para a oposi-
ção. Bolsonaro, por sua vez, sa-
be que se demiti-lo agora assu-
me toda a responsabilidade da
pandemia do coronavírus.
Enquanto sofre ataques de
Bolsonaro, Mandetta capitaliza
apoio na cúpula dos demais Po-
deres. Anteontem, após ser cri-
ticado pelo presidente, o minis-
tro jantou com os presidentes
do Senado, Davi Alcolumbre
(DEM-AP), e da Câmara, Rodri-
go Maia (DEM-RJ). Foi aconse-
lhado a ir “tocando o barco”. O
ministro também tem exibido
bom relacionamento com o pro-
curador-geral da República, Au-
gusto Aras, e com o presidente
do Supremo Tribunal Federal
(STF), Dias Toffoli.
Além disso, é defendido até
mesmo por bolsonaristas. Re-
centemente, na portaria do Pa-
lácio da Alvorada, uma mulher
pediu que Bolsonaro “deixasse
o ministro trabalhar”.
A mulher de Moro, a advoga-
da Rosângela Moro, foi outra a
sair em defesa do ministro. Ela
publicou em seu Instagram a
frase “In Mandetta I Trust”
(Em Mandetta eu confio) , uma va-
riação usada também por apoia-
dores do ex-juiz da Lava Jato.
Poucos minutos depois, a publi-
cação foi apagada. /
COLABORARAM TÂNIA MONTEIRO,
CAMILA TURTELLI e JULIA LINDNER
Alessandra Monnerat
Tiago Aguiar
Pelo menos 55% dos tuítes com
a hashtag #BolsonaroDay publi-
cados no dia das manifestações
pró-governo de 15 de março saí-
ram de perfis automatizados ou
robôs, de acordo com levanta-
mento da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e da
Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo
(FespSP). O estudo identificou
66 mil contas que, sozinhas, fo-
ram responsáveis por cerca de
1,2 milhão de postagens.
A pesquisa, coordenada pe-
las professoras Isabela Kalil
(FespSP) e Marie Santini (U-
FRJ), aponta que os robôs que
usaram a hashtag #Bolsonaro-
Day publicaram, em média, 700
tuítes no dia 15 de março. As con-
tas automatizadas mais ativas
chegaram a postar mais de 1,
mil tuítes nessa data.
A grande quantidade de tuí-
tes por conta em apenas um dia
é indício de automação, segun-
do as pesquisadoras. De acordo
com o estudo, usuários comuns
publicam de três a dez vezes no
Twitter por dia; perfis mais ati-
vos chegam a 50 tuítes diários.
O estudo mostra a formação
de uma “tropa cibernética” com
uso expressivo dos chamados ro-
bôs e ciborgues. Os primeiros
são contas que publicam, de for-
ma automática, mensagens escri-
tas com uso de inteligência artifi-
cial; os segundos, perfis que pos-
tam tuítes elaborados por huma-
nos, mas também de maneira au-
tomatizada.
“As chamadas ‘tropas ciber-
néticas’ ou exércitos virtuais
são comumente utilizados nas
redes sociais para ativar a mili-
tância online a favor do gover-
no e falsificar a opinião públi-
ca”, afirma a pesquisa.
Para identificar as publica-
ções de perfis inautênticos, as
pesquisadoras utilizaram o
software Gotcha, desenvolvido
pelo Laboratório de Microsso-
ciologia e Estudo de Redes (Ne-
tLab) da UFRJ, em parceria
com a Twist System, uma star-
tup de ciência de dados. O índi-
ce de acerto é 80%.
O estudo também analisou
tuítes com as 30 principais
hashtags de apoio ao presiden-
te Jair Bolsonaro entre 1.º de ja-
neiro e 15 de março. A pesquisa
identificou alguns padrões de
comportamento nas posta-
gens. Um deles é o de “campa-
nha permanente”: isso significa
adotar métodos de campanha
mesmo fora do período eleito-
ral, com uso da militância vir-
tual para atacar adversários. “O
objetivo é provocar o ‘contágio’
emocional e respostas viscerais
do público, como raiva, medo,
desorientação, negacionismo e
indignação”, afirmaram as pes-
quisadoras.
Em nota, o Twitter afirma que
“inferências como essa não le-
vam em consideração as medi-
das defensivas” da plataforma pa-
ra “garantir que o conteúdo auto-
matizado não influencie as con-
versas” na rede social. A empresa
diz ainda que não encontrou ma-
nipulação coordenada generali-
zada nos tweets com a hashtag
citada, mas que “seguirá acompa-
nhando de perto as conversas so-
bre o tema na plataforma.”
Em atrito com presidente Jair Bolsonaro, ministro da Saúde é apoiado pela cúpula do Congresso e do Judiciário e até por bolsonaristas
Felipe Frazão / BRASÍLIA
Apesar da operação deflagrada
na última hora, o Palácio do Pla-
nalto não conseguiu barrar a
prorrogação da CPI das Fake
News. Vista como foco de pro-
blemas para o governo, a comis-
são composta majoritariamen-
te por deputados e senadores
de oposição ganhou mais 180
dias e vai funcionar até outubro.
O Congresso confirmou o
apoio de 34 senadores e 209 de-
putados à continuidade das in-
vestigações, iniciadas em 2019.
Houve pressão do governo para
a retirada de assinatura, mas
não adiantou. Interlocutores
do presidente Jair Bolsonaro
alegavam que a agenda do Legis-
lativo deveria se concentrar em
medidas de combate ao corona-
vírus. Integrantes da CPI, por
outro lado, argumentaram que
há muitas informações falsas so-
bre a doença que precisam ser
investigadas.
A continuidade da CPI é mais
um revés para Bolsonaro, que
se desgastou com o Congresso
e perdeu respaldo de aliados
por defender posições antagôni-
cas às das autoridades sanitá-
rias do Brasil e do mundo no en-
frentamento da covid-19.
Mudanças recentes na compo-
sição da CPI, especialmente no
PSL, partido que Bolsonaro
abandonou, fizeram com que o
governo passasse a sofrer segui-
das derrotas em votações. A CPI,
a partir de agora, pretende abrir
até uma frente para apurar quem
repassou fake news sobre a pan-
demia do novo coronavírus.
Segundo o senador Angelo
Coronel (PSD-BA), presidente
da comissão parlamentar, o ob-
jetivo é “descobrir quem são os
patrocinadores dessas pessoas
que se utilizam de perfis falsos
para depreciar as instituições, a
família e atentar contra a vida,
com falsas informações sobre o
coronavírus”. “Temos que ba-
nir os marginais digitais e punir
seus financiadores”, disse.
Twitter e Facebook passaram
a bloquear o acesso a conteúdos
que são contrários às orienta-
ções médicas e podem colocar
em risco a saúde pública.
Nesta semana, Bolsonaro re-
produziu em sua conta oficial
do Twitter um vídeo mostran-
do desabastecimento de um
mercado de produtos agrícolas
em Contagem (MG). O vídeo
era falso e ele acabou pedindo
desculpas, além de apagá-lo.
O senador Flávio Bolsonaro
(Republicanos-RJ) e o deputa-
do Eduardo Bolsonaro (PSL-
SP), filhos do presidente, tam-
bém tiveram publicações rela-
cionadas à covid-19 removidas
ou borradas de redes sociais.
Antes da pandemia, a CPI já
havia aprovado pedidos para
promover audiência com repre-
sentantes da Organização Mun-
dial de Saúde (OMS) e interro-
gar pessoas ligadas ao movimen-
to antivacina e a sites com reco-
mendações médicas falsas.
Maioria de tuítes de ato
pró-governo saiu de robôs
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
lO governo Jair Bolsonaro auto-
rizou a contratação de empresas
condenadas por fraudes e irregu-
laridades durante o período de
pandemia do coronavírus. Até a
tarde de ontem, o Ministério da
Saúde já havia fechado pelo me-
nos 30 contratos com dispensa
de licitação, por valores que su-
peram R$ 150 milhões, para a
compra de equipamentos, de lei-
tos de UTI e outros produtos. /
PATRIK CAMPOREZ
l ‘Emoção’
l Apuração
Planalto sofre revés com prorrogação de CPI das Fake News
Estudo identifica 66 mil
contas que, sozinhas,
foram responsáveis por
cerca de 1,2 milhão de
posts no dia 15 de março
Barroso admite adiar eleição municipal. Pág. A6 }
DIDA SAMPAIO/ESTADÃO
Empresa condenada
pode ser contratada
“O objetivo dessa forma de
comunicação, marcada por
informações enganosas e
exaltação de si, é provocar o
‘contágio’ emocional e
respostas viscerais.”
TRECHO DO ESTUDO DA UFRJ E FESPSP
Exposição. Luiz Henrique Mandetta (à esq.) durante entrevista ao lado dos ministros Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo)
Mandetta vê crescer seu capital político
MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO
“Vamos descobrir quem são
os patrocinadores dessas
pessoas que se utilizam de
perfis falsos para atentar
contra a vida, com falsas
informações sobre o vírus.”
Angelo Coronel (PSD-BA)
SENADOR E PRESIDENTE DA CPI
Senado. Sessão da CPI Mista das Fake News; comissão vai funcionar agora até outubro
Comissão Parlamentar
de Inquérito considerada
problemática para o
governo ganha mais 180
dias de funcionamento