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A8 Internacional QUARTA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON
O Brasil tem criado proble-
mas desnecessários com ou-
tros países, o que contraria os
interesses nacionais especial-
mente durante um momento
de crise. A avaliação é do em-
baixador Sérgio Amaral, presi-
dente do Conselho Empresa-
rial Brasil-China. Segundo ele,
as provocações do governo
brasileiro – a mais recente vei-
culada pelo ministro da Educa-
ção, Abraham Weintraub –
são “gratuitas, irresponsáveis
e esquizofrênicas”.
Para Amaral, que até junho
chefiou a embaixada brasileira
em Washington, o Brasil sofre-
rá impacto econômico da bri-
ga com os chineses. “Os asiáti-
cos evitam a confrontação e
um diálogo mais agressivo,
mas eles agem. Não seria sur-
presa que, dentro de alguns
meses, haja redução das im-
portações de soja”, disse. A se-
guir, trechos da conversa do
diplomata com o Estado.
lComo o sr. avalia a tensão
recente entre Brasil e China?
Há preocupação com essas pro-
vocações gratuitas. Já é a se-
gunda em pouco tempo. Além
de serem gratuitas, são irres-
ponsáveis, porque ignoram o
dano que provocam às rela-
ções entre Brasil e China. Elas
têm também um lado esquizo-
frênico. De um lado, o governo
constrói, com a ministra Tere-
za Cristina ( da Agricultura ), o
lado do agronegócio. O comér-
cio está aumentando, os pro-
blemas estão se resolvendo.
Na área de infraestrutura, o mi-
nistro Tarcísio ( Gomes de Frei-
tas ) desenvolveu projetos gran-
des que podem aumentar nos-
sa produtividade. Mas quem
vai investir no Brasil neste mo-
mento? São os chineses. Quem
pode continuar comprando o
volume que temos exportado
do agronegócio? Os chineses.
Então, se de um lado o gover-
no constrói, do outro destrói,
através de um ministério que
não tem envolvimento relevan-
te na relação com a China.
lQual o impacto comercial des-
sas provocações para o Brasil?
Isto é um problema maior, por-
que já podemos sofrer um aba-
lo na nossa capacidade de ex-
portação. Primeiro, em razão
da trégua comercial entre EUA
e China, em que os chineses fo-
ram obrigados a comprar US$
32 bilhões adicionais dos EUA.
O Brasil, que havia se beneficia-
do da guerra comercial, agora
terá seu comércio desviado em
favor dos EUA. Nós já perdería-
mos US$ 10 bilhões em dois
anos com essa mudança. Ou-
tro ponto é que o mundo entra-
rá em recessão e, portanto, ha-
verá redução da demanda por
commodities. Ou seja, se não
houvesse nenhum problema,
já teríamos dificuldade em ex-
portar. Agora, ficou ainda pior.
lA China exporta equipamentos
médicos. O Brasil pode perder na
negociação por produtos disputa-
dos por vários países?
São negociações comerciais.
Existem problemas de logísti-
ca, de pagamento. Mas não
existe por parte do governo
chinês qualquer diferença em
relação aos fornecimentos pa-
ra o Brasil. As compras indivi-
duais são operações de merca-
do. O que existe é uma grande
disputa e é possível que alguns
países que tenham relação
mais próxima obtenham vanta-
gem. A China vendeu equipa-
mentos para o mundo inteiro.
Neste momento, fazer uma
provocação ao governo chinês
não é uma prática inteligente,
nem compatível com os inte-
resses do País.
lA última provocação do Brasil
teve uma resposta dura da Chi-
na. Isso pode ser contornado
como foi em outras ocasiões?
Desta vez é mais grave. No ca-
so de Eduardo Bolsonaro, ele é
um deputado, não fala necessa-
riamente em nome do governo
embora seja evidente a relação
com o presidente. Neste caso,
(Weintraub) é um membro do
governo que fez uma provoca-
ção inútil e gratuita. A respos-
ta foi a mais dura possível den-
tro do padrão ameno das res-
postas. O embaixador da Chi-
na qualificou a atitude como
“forte indignação”. Países
asiáticos evitam a confronto,
mas agem. Não seria surpresa
que, dentro de alguns meses,
haja redução das importações
de soja, ou que sejam impostas
barreiras sanitárias a nossas ex-
portações de carne. Não acredi-
to que essa situação seja resol-
vida com o tempo.
lOs EUA também an-
daram se estranhando
com a China, quando
Trump disseminou o
termo “vírus chinês”
para a covid-19. Os
EUA conseguiram
abafar a crise?
Trump ligou pa-
ra Xi Jin-
ping. O que eles conversaram
eu não sei. O fato é que as rela-
ções entre Brasil e China não
precisariam passar por provo-
cações desse tipo. EUA e Chi-
na estão em um grande confli-
to hegemônico. Nós não está-
vamos. Nós éramos percebi-
dos como amigos da China.
lO alinhamento com os EUA
tem valido a pena para o Brasil?
Há uma relação muito boa
com os EUA e sou a favor da
aproximação. Esse foi objetivo
do meu trabalho em Washing-
ton e acho que tivemos resulta-
dos importantes. Aproximar
dos EUA é um direito que te-
mos, mas não podemos ver es-
ta questão como dilema, de es-
tar próximo de um ou de ou-
tro. Temos boas razões para
querer estar bem com os dois.
Este é um falso dilema. Nós
não temos que tomar posição
em um conflito entre duas po-
tências. Isso não tem cabimen-
to. Se os EUA fazem negócio
com a China, por que imporía-
mos restrições? Temos de con-
siderar os interesses nacionais.
Neste momento, o Itamaraty
não está exercendo o papel que
sempre exerceu, que é a coorde-
nação dos interesses dos dife-
rentes ministérios. Está haven-
do um processo de fragmenta-
ção da política externa, o que é
muito ruim para o Brasil.
lComo ficará o Brasil no tabulei-
ro global do mundo pós-crise?
O Brasil sai enfraquecido. É
preciso ver ainda qual será o
custo da crise em termos de
saúde e economia para um
país que já enfrentava dificul-
dades sérias. Talvez seja uma
grande oportunidade para o
País enfrentar a questão da
produtividade econômica e da
desigualdade social. Talvez es-
sa seja uma oportunidade de
reflexão. Não dá mais para em-
purrar com a barriga reformas
que reduzam as desigualdades
e promovam um novo pacto
de país. Esse pacto já estava so-
bre a mesa antes da crise, com
as manifestações no Chile, na
Europa, mostram um processo
de esgotamento. Estamos en-
trando em um ciclo novo de
uma forma disruptiva e é im-
portante aproveitar para colo-
car sobre a mesa as verdadei-
ras questões.
lComo a imagem de Bolsonaro
fora do País afeta a posição do
Brasil no cenário global?
O Brasil sempre desempenhou
um papel relevante nas gran-
des questões internacionais,
desde a Liga das Nações. Eu
não acho que o Brasil hoje te-
nha condições de desempe-
nhar um papel semelhante. Já
temos problemas sérios, so-
ciais e econômicos. Além de-
les, estamos criando novos pro-
blemas de forma desnecessá-
ria. As provocações à China
são apenas um exemplo me-
nor. O conflito que alimenta-
mos com a França é outro
exemplo. O mundo não está
contra o Brasil, nós é que esta-
mos contra o mundo.
PEQUIM
A China esperava a notícia ha-
via três meses – e ela veio on-
tem. Pela primeira vez, o país
não registrou nenhuma morte
pela covid-19 desde o começo
da pandemia, que apareceu no
fim do ano passado, se espa-
lhou e já matou pelo menos 75
mil pessoas em todo o mundo.
Nas últimas semanas, o nú-
mero oficial de mortos pelo co-
ronavírus já vinha abaixo de dez
por dia, mas jamais tinha sido
zerado desde 21 de janeiro,
quando começaram os regis-
tros da Organização Mundial
de Saúde (OMS). O primeiro
óbito pelo vírus na China foi no-
tificado em 11 de janeiro. Desde
então, quase 82 mil pessoas fo-
ram infectadas no país – 3,3 mil
morreram.
O declínio nos casos de conta-
minação e mortes na China, nas
últimas semanas, é acompanha-
do por dúvidas sobre a confiabi-
lidade dos números oficiais. Al-
gumas famílias relataram à im-
prensa que quem morreu em ca-
sa ou não foi testado no início
do surto, quando os hospitais
estavam sobrecarregados, não
entrou na contabilidade.
Além disso, enquanto novos
casos de contaminação de ori-
gem local caíram a zero, a Chi-
na continua enfrentando uma
onda de infecções importadas.
O Ministério da Saúde anun-
ciou mil casos importados,
com 32 novos registros somen-
te ontem. As ações para conter
a disseminação do vírus come-
çaram no final de janeiro, com
o confinamento drástico de
mais de 50 milhões de pessoas
em Wuhan, origem da epide-
mia, e no restante da Província
de Hubei. Os moradores fica-
ram em casa por mais de dois
meses.
Desde a meia-noite de ontem
(13 horas de ontem, em Brasí-
lia), as pessoas saudáveis pode-
riam deixar a capital da provín-
cia. “Muitos pensam que, a par-
tir de 8 de abril, poderão rela-
xar, mas precisaremos de mais
vigilância”, afirmou o jornal de
Hubei, citando um funcionário
de alto escalão de Wuhan. “Não
haverá relaxamento.” / EFE e AFP
l Negócios
“Já teríamos
dificuldade em
exportar. Agora,
ficou ainda pior”
Sérgio Amaral
PRESIDENTE DO CONSELHO
EMPRESARIAL
BRASIL-CHINA
ENTREVISTA
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
ANCARA
A Turquia tem registrado quase
4 mil infecções pelo coronaví-
rus diariamente, ultrapassando
ontem 34 mil contaminados
desde que o primeiro caso foi
confirmado, quatro semanas
atrás. O número de mortos, 725,
ainda é baixo se comparado a
outros países, mas o rápido au-
mento de infecções revela que o
número total de casos confirma-
dos na Turquia é um dos que
cresce mais rápido no mundo.
O presidente, Recep Tayyip
Erdogan, porém, resiste ao ape-
lo dos médicos e da oposição pa-
ra que ordene às pessoas que pa-
rem de trabalhar e permane-
çam em casa, insistindo que “as
rodas da economia precisam
continuar girando”. A Turquia
ainda se recupera da crise de
2018, o que leva economistas a
acreditar que uma nova reces-
são em razão da pandemia será
inevitável.
O governo tem gradualmen-
te aumentado as medida de
combate ao vírus, incluindo a
suspensão de voos internacio-
nais, o fechamento de frontei-
ras, a proibição de viagens entre
cidades, reuniões públicas, as
orações em massa, além de ter
ordenado o fechamento de es-
colas e de algumas lojas. Pes-
soas com menos de 20 anos e
acima de 65 anos são obrigadas
a ficar em casa.
Na segunda-feira, Erdogan
proibiu a venda de máscaras e
disse que elas serão distribuí-
das gratuitamente. O uso do
equipamento é obrigatório nos
transportes, nos espaços públi-
cos e nas lojas. O presidente
também prometeu que dois hos-
pitais de campanha em Istam-
bul, com capacidade para mil lei-
tos cada um, estarão prontos
em 45 dias, um perto do antigo
aeroporto Ataturk e o outro em
Sancaktepe, no lado asiático da
cidade de 17 milhões, que con-
centra cerca de 60% dos casos
de covid-19 no país.
Além das crises de saúde e
econômica, a pandemia tam-
bém inflamou a profunda divi-
são política na Turquia. Um
projeto de lei, que será votado
pelo Parlamento, prevê a liber-
tação antecipada ou prisão do-
miciliar para um terço da popu-
lação carcerária, mas centenas
de ativistas dos direitos huma-
nos, jornalistas e políticos da
oposição não são elegíveis ao
benefício.
Os primeiros esboços do pro-
jeto de lei incluíam pessoas acu-
sadas de crimes sexuais ou vio-
lência de gênero, mas foram mo-
dificados por pressão de grupos
de defesa das mulheres. Pelo
menos 14 mulheres foram mor-
tas desde o início das medidas
contra o coronavírus, que exa-
cerbaram o problema de violên-
cia doméstica.
Uma campanha de doação do
governo também foi criticada,
depois que se tornou claro que
funcionários de algumas com-
panhias com ligações com o Par-
tido Justiça e Desenvolvimento
(AKP), de Erdogan, e funcioná-
rios públicos tiveram de fazer
doações compulsórias de seus
salários, enquanto a mesma
prática foi proibida em cidades
controladas pela oposição. / EFE
Governo chinês não relata mortes pela 1ª vez desde janeiro
Proteção. Chineses com máscaras usam bicicleta para ir ao trabalho na capital Pequim
l Vítimas
Erdogan rejeita restrições
e vírus avança na Turquia
NOEL CELIS / AFP
Alívio. Aeroporto de Wuhan já registra volta dos voos
Apesar da boa notícia,
autoridades ainda temem
casos importados, que
somam pelo menos mil
em todo a China
CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS
‘As provocações à
China são gratuitas
e irresponsáveis’
Ex-embaixador do Brasil
nos EUA diz que governo
vem criando problemas
desnecessários em
tempos de crise
Sérgio Amaral, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China
34 mil
pessoas foram contaminadas
com covid-19 na Turquia, 725
morreram. País tem alta taxa de
novos casos, cerca de 3,9 mil por
dia, mais do que o registrado
ontem na Espanha e na Itália
Presidente quer que
pessoas saiam para
trabalhar, apesar do
crescente número
de infectados no país
MARCOS CORRÊA / PR - 16/5/