REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
amante; e quem tem sensibilidade para amar, também
a tem para sentir; porque se a formosura nos recreia,
também a injúria nos irrita; se o agrado nos convida, o
desprêzo nos magoa; e se o amor enfim nos chama,
também a ofensa nos retira.
Sim, é soberba a formosura, mas não é para (109)
admirar, pois é grande o seu império; é vaidosa, mas como
pode não o ser? É presumida, mas que muito se em se vendo, a
sua mesma vista a lisonjeia? É tirana; que importa, se é virtude
êsse defeito, e se nela a bondade é culpa? Na formosura acha-
se a circunstância mais essencial da luz; esta ilustra, e faz
claros os objetos, que estão perto dos seus raios; assim a
beleza, pois parece faz formosos aquêles vícios que a
acompanham; essa fereza, essa arrogância, e essa mesma
condição altiva, sim são imperfeições grandes na beleza, mas
são como as sombras, que um delicado pincel debuxa, a repre-
senta, não para desluzir o primor da arte, mas para realçar a
fineza da pintura. Uma estrela brilha mais no espantoso
silêncio de uma noite escura; a mais perfeita luz é a do sol,
contudo a sua atividade nos molesta, e escandaliza: as coisas
nem por mais perfeitas nos agradam mais; antes alguma
imperfeição as modifica em forma que ficam proporcionadas
ao nosso gôsto; aquilo que é perfeito em um certo grau, excede
a nossa esfera, e por isso nem o podemos gozar, nem entender,
porque o desejo não se estende adonde a compreensão não
chega. O entendimento, ou a alma é o que primeiro move, e
assim tudo o que excede a nossa inteligência, fica sendo
impenetrável ao nosso afeto. Mil coisas há perfeitas no seu
gênero, por onde continuamente