REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
elevam de tal sorte, que chegam ao lugar, de onde por
mil partes se lançam e precipitam. Isto vemos nas
águas de uma ponte, donde não concorrem mais
motivos, que aquêles que em um corpo fluido pro-
cedem do equilíbrio. Só nas mulheres não queremos
achar naturalidades; prendem-se porque são mulheres,
como se quando vêm ao mundo, trouxessem na razão
do sexo escrita a condenação; e que a formosura só
lhes fôsse dada para regular-lhes os graus de
desventura. Quem diria aos homens, que as mulheres
sendo compostas de uma matéria frágil, e propensa,
podem espiritualizar-se em forma, que tôdas se
convertam em discurso racional? Trabalhe embora o
ciúme, e juntamente a vaidade; o ciúme em procurar
que a mulher se não incline, e a vaidade em prescrever
documentos à beleza, para que não não ame sem certas
proporções, e identidades; nem o ciúme, nem a vaidade
hão de alcançar aquêle intento ; o amor não admite
fôrça, nem império; ninguém ama, nem desama por
preceito. Quem há de tirar o gôsto, que a alma sente,
quando os olhos, ou o pensamento lhe mostram um
objeto lisonjeiro e agradável? Como se há de fazer, que
a bôca seja insensível ao sabor de um manjar delicioso;
e os ouvidos como podem deixar de suspender-se ao
som de uma voz sonora e cheia de harmonia? As pri-
meiras qualidades não se podem mudar. Não podemos
dar leis às coisas; ao exterior delas, sim; as palavras e
as ações admitem composição, e fingimento ; a
substância delas, não; por isso não é fácil desaprovar o
que os sentidos aprovam. Quem há de reduzir a
formosura a crer, que deve fugir de quem busca, e que
deve querer mal a quem lhe quiser bem?