MATIAS AIRES RAMOS DA SILVA DE EÇA
(77) São raras as ações que sejam ilustres por si
mesmas; apenas haverá algumas que não deixam
conhecer que vêm do homem. As mais das coisas
admiram-se, porque se não conhecem; juntamente
porque nelas há um rico véu que as cobre: vemos um
exterior brilhante, que muitas vêzes serve de esconder
um abismo horrendo; a mesma luz arma-se de raios,
para que não possa examinar-se de onde lhe vêm os
resplendores: a formosura em tudo nos atrai; a nossa
admiração não pode passar. além; donde a encontra, aí
fica suspensa e cega. Isto sucede nas ações dos
homens; as mais sublimes, parece que nos cegam, e
suspendem; e talvez seriam detestáveis, se lhes não
ignorássemos as causas. Tudo o que tem ar de grande
prende a nossa imaginação de sorte que não fica livre
para discorrer na coisa, senão no estado de grandeza
em que a vê, e não para indagar de donde veio, nem
como veio. As águas que saltam de um rochedo, e que
correm velozmente para o mar, antes que lá cheguem,
vão passando por lugares diferentes; em uns alargam-
se, em outros cabem mal; em uns acham fundo, e ca-
minham docemente, em outros só vão lavando a
branca areia; em uns murmuram, em outros preci-
pitam-se; em uns não encontram embaraço, correm
fàcilmente, e com sossêgo, em outros detêm-se, porque
passam por penedos desiguais; em uns parece que
fogem, em outros também parece que descansam ; em
uns vão sem rodeio, em outros retrocedem, e se
quebram em mil giros; aqui vão regando a flor do
campo, ali vão banhando o junco humilde; aqui correm
transparentes, e ali vão turvas e limo-sas. Estas são
tôdas as mudanças por onde passam as águas de uma
fonte, desde que deixam o rochedo donde nascem, até
que entram no mar e donde morrem: confundidas hoje
as suas águas, já não são