Ana Lourenço
Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO
A letra de Canções e Momentos,
de Milton Nascimento e Fer-
nando Brant, diz que “há mo-
mento / que se casa com can-
ção”. E, se o tempo é de distan-
ciamento e de preocupação
com a pandemia do novo coro-
navírus – o que suscita senti-
mentos como medo, saudade e
apreensão com o futuro –, nada
mais normal que ele inspire
músicos e compositores a abor-
dá-lo em suas canções.
As músicas podem aparecer
em formato de funk, como fez o
MC Tchelinho em Corona Funk;
de rap, como Quarentena, de
MV Bill; em uma balada que fala
da falta de abraços, composta
por Di Ferrero; ou na poesia cria-
da por Chico César. Há também
quem tenha produzido um ál-
bum inteiro para afastar o tédio
que insiste em chegar ao isola-
mento, caso do rapper Baco
Exu do Blues. Ou na coletivida-
de virtual, retrato dessa época,
do grupo espanhol Stay Homas.
Todas elas tentam, de alguma
forma, entreter a população: se-
ja para traduzir em versos os
sentimentos angustiantes que
estamos vivendo ou para disse-
minar mensagens positivas.
Além de criar algo mais perene
na questão artística do que as
lives, formato que conquistou o
público, mas que tem duração,
por vezes, bem efêmera.
Positividade e improviso. Guil-
lem Bultó, Rai Benet e Klaus
Stroink, que formam o grupo es-
panhol Stay Homas (uma refe-
rência à expressão “fique em ca-
sa”), eram colegas de quarto an-
tes de a quarentena começar. Co-
mo os três são músicos, era co-
mum se juntarem para tocar sem
compromisso. Porém, um dia,
eles criaram um samba sobre o
coronavírus e publicaram. Tudo
mudou. “Foi muito depressa. As
pessoas passaram a comparti-
lhar e mostrar muito carinho pe-
las nossas canções”, contou ao
Estado o trompetista Klaus.
De compartilhamento em
compartilhamento, o trio ficou
famoso e hoje já são 19 confina-
tion songs (canções de confina-
mento). “Antes, colocávamos
uma por dia, mas a quarentena
foi se alargando e decidimos bai-
xar um pouco o ritmo e fazer
uma a cada dois dias. Afinal, tam-
bém não temos tantas ideias”,
brinca o trombonista Guillem.
As canções variam de tema e
de ritmos. “Escrevemos um pou-
co sobre como estamos nos sen-
tindo a cada dia. Por isso, as can-
ções dos primeiros dias não são
iguais às de hoje, por exemplo.
Mas sempre tentamos ter um cli-
ma positivo, pois coisas negati-
vas já estão acontecendo e não é
preciso relembrar as pessoas dis-
so”, explica o
baixista Rai. A
maioria das
músicas conta
com participa-
ções especiais
de outros artis-
tas – que can-
tam pelo tele-
fone em espanhol, inglês, cata-
lão e até portunhol. “Gostamos
muito das músicas brasileiras”,
dizem. Outra inovação é o uso
de instrumentos, digamos, casei-
ros. Baldes, facas e até porta-
temperos são adaptados. “Usa-
mos o que temos”, diz Klaus.
Do quarto para a rede. O can-
tor e compositor Chico César
tem usado sua conta no Insta-
gram para refletir, em forma de
canções, sobre temas relaciona-
dos ao coronavírus e ao isola-
mento social. Já são oito can-
ções, que ele apresenta em for-
mato voz e violão, apresentadas
diretamente de seu quarto, lugar
onde gosta de ficar, segundo ele.
Uma delas, batizada de Nada,
nasceu enquanto Chico lavava
os pratos – inspirada por uma li-
ve da cantora baiana Margareth
Menezes com a militante de mo-
vimento negro Olívia Santana.
Na conversa, elas pediam que a
população de Salvador ficasse
em casa na Páscoa. Na canção, o
compositor sugere uma dança
no quintal, um disco legal na vi-
trola e pede para deixar a distân-
cia construir pontes de “lembrar
e esquecer”.
“Precisa-
mos buscar
um novo lu-
gar, um novo
tempo, que
tem a ver com
o autocuida-
do, do cuidado
com o outro e, sobretudo, desa-
celerar. O momento é de calma.
Estávamos devorando o mar,
querendo destruir as entranhas
da Terra, desprezando povos
nativos, vendo a volta do traba-
lho escravo”, diz, ao fazer uma
comparação com a Idade Mé-
dia. “Não é castigo divino, mas
há um menosprezo de Deus.”
Questionamento parecido es-
tá na letra da bem-humorada Se
Essa Praga Morresse, outra feita
por Chico na quarentena, na
qual pede aos céus o fim da pan-
demia. “Será que o tal do tão
propagado caos/ Vai causar ilu-
minação?/ Será que aqui perma-
necerá/ Hora extra e serão?/ Se-
rá que o ser que do escuro sairá /
É ciência ou religião?”, diz um
trecho da canção. “Deus mora
na ciência”, diz o compositor,
dando uma resposta ao próprio
questionamento.
As canções vão virar um dis-
co? Chico acha pouco provável.
“O que será da indústria do lei-
te? Do sapato? Não sei. Será que
terá indústria para o disco? De
concreto, agora, só a minha ne-
cessidade de comunicação co-
mo artista”, reflete. Ele acredita
que o setor cultural, em especial
o da música, vai descobrir novas
formas de apresentar seu traba-
lho, quem sabe dentro da pró-
pria casa, como vem acontecen-
do com as lives.
Música para curar. O cantor
Di Ferrero foi um dos primeiros
artistas brasileiros a anunciar
que havia sido infectado pela co-
vid-19, em 12 de março. Ficou iso-
lado 20 dias em casa e, assim que
se sentiu melhor – ele diz que fi-
cou rouco por duas semanas em
razão dos sintomas da doença –,
pegou o violão e compôs a can-
ção que batizou de Vai Passar.
“Foi a primeira música que to-
quei quando peguei o violão. Foi
bem intuitivo. Ela me trouxe
paz, conforto”, conta. A letra diz
“Nós não precisamos de muito/
Não se entregue, se doe para
mundo/ E escute uma voz lá no
fundo”. “Para umas pessoas (es-
sa voz) é Deus, mas cada um tem
seu modelo de Deus. Para uns é
uma intuição, um pensamento.
Para mim, ela foi bem clara: é
quando eu arrepio. É mais sobre
sentir, menos sobre falar.”
A música, em um primeiro
momento, foi apresentada em
uma live no Instagram e, em 10
abril, foi lançada oficialmente
nas plataformas musicais, em
uma gravação de voz e violão,
feita em casa. Um clipe com a
participação de personalidades
como Camila Queiroz, Paulo
Miklos, Isabeli Fontana, Vitor
Kley, Paulo Ricardo e Serginho
Groisman também foi monta-
do virtualmente.
Aproveitando o tempo de iso-
lamento, Di reflete sobre uma
nova realidade, pós-pandemia.
“As pessoas mais sensíveis vão
rever conceitos. Vão mudar de
vida, despertar para algo. O
mundo estará diferente e quem
não mudar terá que se encaixar
nele de alguma forma”, diz.
A cura pela música também
aconteceu com o rapper Baco
Exu do Blues. “Eu estava preci-
sando sair dessa agonia. Já esta-
va em casa antes da quarentena,
pois tinha quebrado o braço e,
assim que consegui mexê-lo, só
precisava fazer alguma coisa”,
explica. Ele conta que, em cada
letra das nove canções compos-
tas para o álbum Não Tem Baca-
nal na Quarentena, lançado em
30 de março, existe um pouco do
momento atual. “Esse álbum vai
me fazer lembrar do sentimento
que tive quando estava enclausu-
rado. O fato de eu ter feito ele em
três dias mostra muito a relação
com a urgência do que eu preci-
sava falar e estava guardando.
Foi sem filtro nenhum.”
Entre as canções, a faixa Amo
Cardi B e Odeio o Bozo traz uma
crítica ao governo brasileiro e
faz referência ao vídeo da canto-
ra americana, divulgado em suas
redes sociais, no qual ela fala so-
bre o coronavírus. Para susten-
tar a crítica, Baco colocou áu-
dios de moradores de diferentes
periferias do Brasil, que contam
como está a situação por lá.
“A maioria dos áudios são ca-
suais. Sou eu perguntando para
os amigos como eles estão e
eles respondendo.” Uns dos tre-
chos diz: “Não tenho dinheiro
pra pagar plano / Não tem cura
essa desgraça / Se eu pegar essa
desgraça, já era eu irmão / Tá
maluco, eu quero viver parcei-
ro”. “É uma crítica até para mim
mesmo, sabe? Tem gente que es-
tá sofrendo por motivos bem
maiores que os meus”, afirma.
Pensando justamente na peri-
feria, Marcelo Valentim, o MC
Tchelinho, em parceria com o
coletivo Sejamos Base, criou o
Corona Funk. A música tem o ob-
jetivo de ensinar as regras para
se evitar a contaminação pela
covid-19 para as comunidades.
“Eu, quando falo, falo direta-
mente com a favela, porque eu
sou favelado. Não é informação
que chega de outro lugar.”
A disseminação da música,
no entanto, preocupa o músico.
“Nem todo mundo tem acesso
à internet. Então, agora, nosso
passo é fazer com que a informa-
ção seja de fato consumida por
eles”, diz. Carros de som, rádio
e televisão são alguns dos ca-
nais que eles esperam utilizar
para isso.
Quem também deixou seu re-
cado foi Moraes Moreira, que
morreu em 14 de abril, vítima de
enfarte. Menos de um mês an-
tes, ele publicou, em sua conta
no Instagram, um cordel de sua
autoria, batizado de Quarentena.
No texto, com forte crítica so-
cial, ele diz, em uma das estro-
fes: “Eu não queria essa praga/
Que não é mais do Egito/ Não
quero que ela traga/ O mal que
sempre eu evito/ Os males não
são eternos /Pois os recursos mo-
dernos/ Estão aí, acredito”.
‘PRECISAMOS
DESACELERAR. O
MOMENTO É DE CALMA’,
DIZ CHICO CÉSAR
INSPIRADOS
NA
Músicos usam confinamento como tema
de canções criadas durante a pandemia
Exclusivos
Carros com só uma unidade PÁG. H7
QUARENTENA
ISOLADOS E
VITÓRIA LEONA
MC
Tchelinho.
‘Corona
Funk’
ensina as
comunidades
a evitar a
contaminação
PARCERIA
Di Ferrero.
Depois de se
recuperar da
covid-19,
músico
compôs a
canção
‘Vai Passar’
MARCELO NUNES
Stay Homas. Grupo
espanhol foi criado
na quarentena
STAY HOMAS
%HermesFileInfo:H-1:20200423:H1 QUINTA-FEIRA, 23 DE ABRIL DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas