Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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34 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


A guerra das terras-raras


vai acontecer?


Enquanto parecia ter o monopólio das terras-raras, recurso indispensável para a


fabricação de produtos de alta tecnologia, a China importou mais do que exportou.


Mas será que algo realmente mudou, considerando que seus clientes continuam


tão dependentes da produção chinesa quanto antes? Ademais, Pequim segue


ameaçando os Estados Unidos com a interrupção das entregas


POR CAMILLE BORTOLINI*


MINERAÇÃO ESTRATÉGICA NO CORAÇÃO DO CONFLITO COMERCIAL SINO-AMERICANO


A


cena aconteceu em 20 de maio
de 2019, em Ganzhou, cidade
de uma dezena de milhões de
habitantes situada na província
de Jiangxi (sudeste da China). Xi
Jinping, o presidente chinês, cami-
nha pelos corredores de uma usina
de terras-raras. Para essa “visita de
inspeção”, amplamente coberta pela
imprensa oficial, ele está acompa-
nhado por Liu He, seu principal con-
selheiro econômico, negociador-che-
fe com os Estados Unidos e
encarregado de desenrolar o conf lito
comercial entre as duas potências.
A data de estadia da dupla não foi
fruto do acaso: dez dias antes, a ad-
ministração do presidente norte-a-
mericano, Donald Trump, havia
inaugurado uma nova etapa na guer-
ra comercial, aumentando o nível das
taxas alfandegárias em US$ 200 bi-
lhões para bens chineses. No embalo,
Washington colocou o gigante das te-
lecomunicações Huawei na lista suja,
impedindo-o de ser abastecido por
componentes norte-americanos, dos
quais alguns lhe são indispensáveis
(semicondutores, sistema de explora-
ção Android). Dois golpes duros para
Pequim, pega de surpresa.
Ao colocar em cena alguns dias
depois sua visita a uma usina de ter-


ra de novas minas. Elas se preocupam
pouco com as condições de trabalho
dos mineiros, extremamente precá-
rias, e menos ainda com questões am-
bientais. Em paralelo, o mercado in-
terno está protegido da concorrência
estrangeira, reservando as atividades
de extração apenas aos industriais
chineses. À medida que os Estados
Unidos se afastavam das atividades
de mineração – a mina da Mountain
Pass foi alvo de escândalos ambien-
tais^5 –, a produção oficial chinesa
(que não inclui a exploração clandes-
tina, estimada historicamente em um
nível entre 20% e 40% da extração to-
tal) progredia irremediavelmente: 60
mil toneladas em 1998, 80 mil tonela-
das em 2002, 100 mil toneladas em
2004, 120 mil toneladas em 2006. A
produção norte-americana foi inter-
rompida em 2003, enquanto a dos ou-
tros países produtores atinge no má-
ximo mil toneladas por ano.
Ao mesmo tempo que garantia
seu domínio, a China se empenhava
em atrair as empresas estrangeiras
que dispunham de um conhecimen-
to tecnológico em matéria de trans-
formação, com o objetivo de aumen-
tar a cadeia de valor. Essa captação se
deu de forma direta: em 1995, a em-
presa chinesa Zhong Ke San Huan
comprou a norte-americana Magne-
quench. Cinco anos depois, a usina
de Indiana foi relocada na cidade de
Tianjin, a leste de Pequim.
O governo chinês também recor-
reu a técnicas mais indiretas, ado-
tando progressivamente uma série
de restrições à exportação (taxas, au-
torizações, cotas) tanto para respon-
der às necessidades crescentes de seu
mercado interno quanto para au-
mentar o valor do estoque de seus
clientes. Em 2010, quando gozava de
um quase monopólio em matéria de
extração, a China diminuiu drastica-
mente suas cotas de exportação para
30 mil toneladas anuais. A Organiza-
ção Mundial do Comércio (OMC) a
condenou quatro anos depois,^6 mas o
mal já tinha sido feito. Para enfrentar
o risco de penúria ou para evitar ter
de pagar um valor excessivo, empre-
sas norte-americanas e japonesas do
setor da transformação instalaram
suas atividades na China. Ao longo da
cadeia, incluindo atividades de alto
valor agregado, como a produção de
ímãs, parcerias se fizeram, condu-
zindo a transferências de tecnologia
em proveito das empresas chinesas.
Estas últimas se impõem hoje como
as campeãs mundiais do setor.

ras-raras, a mensagem de Xi não dei-
xou dúvidas: a China possui um ins-
trumento que pode reverter os golpes
norte-americanos. A imprensa e al-
guns pesquisadores chineses se en-
carregaram das legendas: a China
poderia parar de um dia para o outro
de fornecer metais de terras-raras
para empresas norte-americanas.
Em um comentário em inglês publi-
cado pelo jornal chinês Global Times,
o professor Jin Canrong, que ensina
Relações Internacionais na Universi-
dade Renmin, de Pequim, julgou que
a China “possui três grandes forças
para ganhar a guerra comercial con-
tra os Estados Unidos”, entre elas a
proibição de exportação de terras-ra-
ras.^1 Pouco tempo depois, a organiza-
ção que representa os industriais chi-
neses do setor se declarou
oficialmente favorável à instauração
de tais medidas de retaliação.^2
A ameaça parece ter potencial pa-
ra preocupar, pois já foi posta em prá-
tica no passado: depois da prisão de
um barco de pesca chinês pela Mari-
nha japonesa no arquipélago disputa-
do das ilhas Senkaku/Diaoyu, em se-
tembro de 2010, Pequim interrompeu
bruscamente – mas sem reconhecer
publicamente – suas exportações de
terras-raras para o Japão, causando
pânico nos mercados mundiais.
Mas o que são exatamente as ter-
ras-raras? Um misto de dezessete mi-
nerais com propriedades químicas
próximas – entre eles o cério, o dis-
prósio e o érbio – indispensáveis –
mesmo se utilizados em quantidades
por vezes ínfimas – para a fabricação
das tecnologias de ponta da transição
energética (algumas eólicas, veículos
a energia nova) e aparelhos eletrôni-
cos. As terras-raras são também utili-
zadas na indústria de defesa. E, desde

o fim dos anos 1990, a China garante
em média 90% da produção mundial.

AUMENTO DOS RAMOS INDUSTRIAIS
No entanto, somente um terço das re-
servas mundiais comprovadas se si-
tua em seu território. O Instituto de
Estudos Geológicos dos Estados Uni-
dos (USGS) indica que podemos en-
contrá-las nos subsolos do Brasil, da
Rússia, da Índia, da Austrália, mas
também em diversos países do Sudes-
te Asiático.^3 Desde o início dos anos
2010, projetos de exploração foram
lançados no Canadá, na África aus-
tral, no Cazaquistão e na Groenlân-
dia. Até mesmo a Coreia do Norte rei-
vindica possuir reservas gigantescas.
Durante muito tempo, a China
ocupou não menos que uma posição
quase monopolística. Foi sob Deng
Xiaoping, no final dos anos 1980, que
o Partido Comunista Chinês (PCC)
adotou uma política voluntarista de
desenvolvimento das terras-raras.
Essa indústria era então dominada
pelos Estados Unidos, que controla-
vam, além da mina de Mountain Pass
na Califórnia, a integralidade do ciclo
da transformação em torno da em-
presa Magnequench, filial da General
Motors e carro-chefe da de Indiana,
cujas atividades eram f lorescentes.^4
No entanto, Deng tinha consciência
do interesse geopolítico da explora-
ção das reservas chinesas. Em sua cé-
lebre viagem pelo sul da China em
1992 para retomar as reformas, o ve-
lho líder revelou sua visão: “O Oriente
Médio tem o petróleo, a China tem as
terras-raras”.
Desde então, todos os meios são
válidos para desenvolver essa indús-
tria: as autoridades chinesas outor-
gam terrenos, fornecem energia a
preço baixo, subvencionam a abertu-

© Edson Ikê
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